Cine Victória: As memórias de quem deu nome ao cinema de rua que reabrirá em julho

Cine Victória: As memórias de quem deu nome ao cinema de rua que reabrirá em julho

“Tinha carteirinha e ia ao cinema de graça. Era o máximo!”, lembra Maria Vitoria Kessler, neta do antigo proprietário

Matheus Chaparini

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“O maior acontecimento da cidade”, bradava um anúncio de quase uma página inteira publicado na edição de 4 de setembro de 1940 no Correio do Povo, chamando para a inauguração do Vera Cruz Cine Teatro. Em um momento em que o progresso era a tônica de uma capital em desenvolvimento acelerado, o Centro de Porto Alegre ganhava um cinema no térreo do imponente edifício Vera Cruz. Mais de 80 anos depois da primeira película ser exibida, o discreto cinema da avenida Borges de Medeiros se prepara para uma nova reabertura, prevista para julho deste ano. Desta vez, com uma nova direção. 

As lembranças do cinema retornam com um tom um pouco diferente para uma pessoa em especial: Maria Vitória Kessler. Ela é neta de Victor Kessler, antigo dono do cinema e um dos proprietários do edifício. Foi a existência de Maria Vitória que inspirou o nome Cine Victória. “Meu avô achava que Victor não ficava muito bem como nome de um cinema, então decidiu usar o nome de Victoria porque tinha a mim como neta”, conta.

Na infância e adolescência, Vitória sempre contou com muito orgulho a relação entre seu nome e o cinema, até o dia em que recebeu uma resposta torta. “Eu achava o máximo! Até que um dia, eu já não era mais adolescente… Lembro que fui ao banco fazer um depósito e o rapaz do caixa comentou que o cinema também era Victória. E eu, com muito orgulho, falei “ele tem esse nome por minha causa”. Ele me olhou com uma cara como quem diz: “ah, você é tão velha assim”. Aí eu me dei conta de que não era tão bacana ficar falando isso”, brinca.

Para Maria Vitória, a reabertura é uma recompensa à dedicação das gerações que por ali passaram e trabalharam para manter vivo o cinema. “Eu fiquei bem emocionada de ver que toda essa criação do meu avô volta a ter continuidade e que o nosso nome continua lá, o meu misto com o dele. Fiquei bastante sensibilizada e feliz.”

Uma história de idas e vindas

Apesar de ter dado nome ao cinema, a relação de Maria Vitoria com o espaço é repleta de hiatos, como ela define. De família gaúcha, Vitoria nasceu no Rio de Janeiro, em 1945. Durante a infância, costumava vir a Porto Alegre nos finais de ano para visitar parentes. “Nós, os netos, tínhamos muito orgulho porque a gente tinha carteirinha e ia ao cinema de graça. Era o máximo!”

Em 1964, a família decidiu voltar a viver em Porto Alegre. Vitória havia sido aprovada no vestibular da UFRJ, mas aí veio o golpe militar e “fecharam a universidade na minha cara”, recorda. Temendo a violência da ditadura, Maria foi morar em Paris. “Estava todo mundo naquela de ‘ame-o ou deixe-o’, fui embora pra Europa, Paris, casei com um gaúcho e fiquei uma década lá”, lembra

Em 1971, lançamento de "Um Certo Capitão Rodrigo" gerou filas que se seguiam pela Borges de Medeiros e Andrade Neves | Foto: CP Memória

Na década seguinte, ela voltou a morar em Porto Alegre, mas foi somente cerca de 20 anos depois que passou a se envolver formalmente com o Cine. Na década de 1990, os cinemas de calçada estavam em decadência, com a popularização do videocassete, das locadoras e dos cinemas em shoppings centers. Vitória assumiu a direção como uma forma de tentar salvar o negócio. “Me chamaram porque havia uma preocupação da minha geração de que os mais novos entrassem e pusessem a perder o patrimònio da família, como ocorreu com o City Hotel”, recorda.

Dirigiu o cinema ao lado de Walter Becker e José Luiz Cassal. Seu afastamento se deu quando o cinema saiu da sala antiga. “Foi um erro trocar o cinema para a Casa das Lâmpadas, não tinha nada a ver. Mas eu sozinha não tinha mais como impedir, fui voto vencido.”

A primeira exibição 

A primeira película exibida foi “a obra prima de Frank Capra: A mulher faz o homem”. A avant premiere “para as altas autoridades e imprensa” ocorreu naquela data. No dia seguinte, abria as portas ao grande público aquele que viria a ser um dos mais tradicionais cinemas de calçada de Porto Alegre. Na edição do dia 5 de setembro, a Folha da Tarde abordava a inauguração da “luxuosa casa de diversão” dos Irmãos Pianca com a presença do então prefeito Loureiro da Silva e do diretor da Columbia Pictures, Werner Gentzer.

Em 1953, o Vera Cruz passou a se chamar Cine Victória. O cinema atravessou décadas e diferentes momentos do mercado cinematográfico. As salas funcionaram até novembro de 2018.

Mais de 80 anos após a primeira sessão e prestes a reabrir suas portas ao público cinéfilo de Porto Alegre, a tradicional sala de cinema mexe com as memórias de muita gente que teve sua vida atravessada de alguma forma pela grande tela do Victória. Antigos frequentadores, ex-funcionários, integrantes da família que administrou as salas durante décadas e de quem mais o tivesse como uma referência no Centro da capital gaúcha. 

O velho cinema volta de cara nova

A trajetória do cinema também é composta por alguns hiatos. No fim de 1952, o Vera Cruz fecha as portas, reabrindo em setembro de 1953 como Cine Victória. A sala permaneceu em operação até 1998, quando fechou novamente. No ano seguinte, o Victória reabre em duas salas menores, no endereço atual. O cinema teve ainda outros dois fechamentos: em 2015, reabrindo no ano seguinte, e em  28 de novembro de 2018. Fechadas desde então, as duas salas reabrem nos próximos dias, ainda sem data confirmada.

O espaço recebeu equipamentos novos, teve o carpete substituído e as poltronas higienizadas. Quem assume a direção é a empresa Cult Cinemas, que possui salas em Ijuí e Alegrete. A primeira sala a ser reaberta tem 180 lugares e a outra, 150.

De acordo com Cristiane Brandolt, sócia da empresa, a ideia é trazer um ar de modernidade, mas mantendo a tradição dos cinemas populares de calçada, com preços acessíveis. Para isso, a empresa está instalando projetores digitais, sistemas de som Dolby 7.1 e exibirá lançamentos do cinema nacional e internacional, incluindo versões em 3D.

“Somos uma empresa jovem, com atuação no interior do Estado. Nosso foco é a abertura de cinemas com som e imagem digitais, com qualidade, mas com preços acessíveis e em locais onde exista demanda de cultura e sétima arte”, afirma Cristiane, que administrará o cinema ao lado da sócia Diulia Rossato.

Diulia Rossatto, sócia da nova gestão do Cine Victória | Foto: Ricardo Giusti

De ascensorista a diretor

Outras tantas famílias têm parte de suas histórias entremeadas pela do Cine. A lembrança mais viva dos 44 anos em que José Luiz Cassal trabalhou no Edifício Vera Cruz e no Cinema Victória é de quando entrou em cartaz o filme "Tubarão" (1975), de Steven Spielberg. O longa foi um marco nas telonas por trazer uma série de efeitos especiais inovadores para a época. “O filme ficou sei lá quantos meses em exibição. Volta e meia diziam que ia sair na próxima semana, mas não se conseguia tirar a fita do Tubarão de tanto sucesso que teve. Eu assisti umas dez vezes, era realmente muito bom o filme.”

A sala contava com mil assentos. Cassal recorda que havia ainda uma escadaria, que era utilizada como assento por mais cerca de 100 cinéfilos. O filme era exibido em cinco sessões diárias, todas lotadas. “Sempre dava mais de mil, e tinha fila de espera de 200 a 300 pessoas para a próxima sessão. E foi assim o tempo todo em que esteve em cartaz. Sempre lotado e sempre fila de espera.”

Cassal conseguiu um emprego na empresa Edifícios Reunidos, que administrava o Vera Cruz e o cinema, em 1974. Seu pai era amigo do zelador, que lhe comentou sobre uma vaga para ascensorista pela manhã. Ele tinha 20 anos e pegou o emprego. À tarde, trabalhava como pedreiro junto com o sogro. À noite, estudava. Passou a office boy na administração e foi subindo de cargo até chegar, nos anos 1990, à direção da empresa. Em 2018, se aposentou. Além dele, o filho Everton também trabalhou no local.  

Sala passa por reformas para reinauguração | Foto: Ricardo Giusti

Desenhos em cores e filmes folclóricos

Para o jornalista e pesquisador Cristiano Zanella, autor do livro “The End Cinemas de Calçada em Porto Alegre (1990-2005)”, a reabertura do Cine Victória vai possibilitar que o público do cinema popular volte a ter uma opção no Centro da cidade com custo relativamente baixo. “Se até os anos 70, o Centro de Porto Alegre era onde estavam as grandes lojas e instituições bancárias, os melhores cinemas e confeitarias, hoje o público que vai ao centro não é o público da classe A, é um público de menor poder aquisitivo. Todos esses cinemas que fecharam tinham uma programação popular, não era uma programação erudita”, avalia.

Zanella recorda que as salas da região central, abertas nas décadas de 1940 e 50 acabaram sendo substituídas por salas com perfil mais “cult”, como a Cinemateca Paulo Amorim, da Casa de Cultura Mario Quintana, CineBancários e Cinema Capitólio.

Suas mais antigas memórias do Cine Victória são dos idos de 1977, quando o pai levava ele e a irmã, aos sábados pela manhã, para assistir "Tom e Jerry" em cores na telona. “Eram os mesmos desenhos que passavam na TV, com aquele jazzão de trilha, mas em casa a TV era preto e branco.” Entre as lembranças estão ainda alguns filmes folclóricos, como o hoje raro “Costinha e o King Mong“, paródia do filme "King Kong", com o comediante Costinha, Wilsa Carla e ator mirim Ferrugem, além de “Os Trapalhões e o Rei do Futebol”, de 1986, em que o Rei Pelé interpreta um jornalista esportivo.

“Quando fecha um cinema, é um personagem da cidade que vai a óbito”

O pesquisador Cristiano Zanella destaca a capacidade do cinema evoluir e se transformar ao longo do tempo. Desde sua criação, em 1895, como um cinema documental, o surgimento da linguagem, da fotografia, do som, do 3D, até o filme digital. “A capacidade de transformação do cinema faz com que ele continue bombando mesmo depois de 130 anos”, resume.

E é esse poder de autotransformação que faz com que o Cine Victória reabra ao público mais de 80 anos após sua primeira sessão. Para o pesquisador, o momento representa a ressurreição de um personagem de Porto Alegre. “Quando fecha um cinema - ou um teatro, um restaurante tradicional, uma casa noturna - é um personagem da cidade que vai a óbito. É uma referência, onde a gente viveu momentos, onde casais se formaram e amizades aconteceram. Então quando abre uma sala é uma coisa muito importante, porque essa questão social do cinema pode estar sendo retomada.”


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895