Do cinza ao colorido, conheça a história da escadaria 24 de Maio

Do cinza ao colorido, conheça a história da escadaria 24 de Maio

À série Redescobrir a Cidade, moradores contam sobre a transformação que levou o espaço a ser um ponto turístico

Brenda Fernández

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Resumo da matéria:

Na extensão dos degraus coloridos, o tempo parece passar mais devagar. A atmosfera destoa do entorno, convida o transeunte a andar com mais tranquilidade, reparar nas cores, nas plantas e, se tiver sorte, parar para uma conversa. Na escadaria 24 de Maio, o gato dorme sossegado na janela, a vizinha acompanha do 2º andar do casario o sobe e desce dos pedestres, uma aula de flamenco escapa do tablado da escola de dança e toma o espaço público.

O trecho de 170 degraus que conecta as ruas do bairro histórico André da Rocha e Duque de Caxias, em Porto Alegre, ganha uma atenção especial de quem mora nos prédios antigos à margem da elevação. Com a ajuda de uma série de ações de intervenção da prefeitura e da comunidade, a estrutura passou a ser lembrada como um ponto turístico da cidade.

A escadaria 24 de Maio já teve vários nomes desde o início do século 18. Dos que constam nos registros municipais estão “Beco da Fonte”, “Beco do Juca da Olaria”, “Beco do Jacques”, “Rua Bento Gonçalves” e, por fim, em 1936, “Rua Vinte e Quatro de Maio”, em homenagem à batalha de Tuyuty. Mas tem quem até hoje conheça a viela pelo nome popular de “Beco da Fonte”.

A escadaria em si foi construída em 1942 durante a gestão do então prefeito José Loureiro da Silva. A estrutura era bem diferente da conhecida hoje. Quem subia pela André da Rocha, passava por baixo de uma marquise. O espaço começou a ganhar novos ares a partir do ano 2000, com a demolição da marquise e a instalação de corrimãos e a ampliação de jardins. Os degraus foram encurtados para a colocação de pedras nas laterais, a fim de afastar o trânsito de pedestres das janelas baixas dos prédios. Hoje parte dessas pedras não são visíveis, já que moradores aterraram para a colocação de plantas.

Galeria: veja imagens da obra de revitalização da escadaria

Marlete, a menina dos olhos da escadaria

A aposentada Eva Marlete Gonçalves Campos é uma das moradoras que hoje dedica grande parte do seu tempo à escadaria - que considera parte de seu lar há mais de 40 anos. De memória intacta aos detalhes, ela remonta por meio de fotografias reveladas, e memórias datadas, as primeiras movimentações que deram mais vida àqueles degraus.

“A rua era uma escadaria cinza. A iluminação era muito precária. O lixo nem se fala, era um terrorismo. E como sou uma pessoa que acredito que sempre podemos fazer transformações em qualquer situação da vida, aqui não foi diferente. Naquele momento, conversei com várias pessoas, e a primeira ideia foi montar uma associação”, conta a moradora. A Associação dos Amigos da Vinte e Quatro de Maio e Adjacências (AMIVI), fundada em 1997, funciona até hoje e é lembrada em uma placa fixada no pé da escadaria: “Reforma da Escadaria, uma conquista da sua AMIVI”, de janeiro de 2007. 

Marlete se considera uma “agitadora” local. E não é pra menos. Foi também ela quem tomou a frente e reuniu vizinhos e conhecidos para criar uma feira de exposição para comércio e troca de produtos aos sábados. Começou com pedras, minerais e gemas. Depois de um tempo, ao perceber que o projeto ia deixando de ser de interesse dos envolvidos, ela entrou em ação novamente. Sem deixar com que os frequentadores percebessem um espaço livre, ela resolveu doar livros nos degraus da escadaria. E assim é até hoje. Todos os sábados, a moradora acorda cedo e espalha mesas brancas de plástico com títulos nacionais e internacionais para quem queira.

“Eu pensei: eu não vou deixar de fazer algo que chame a atenção para este lado da rua. Olhei para uns livros que tinham aqui e tive a ideia de doar, expor, colocar em mesas. E, olha, foi uma beleza”, conta orgulhosa, dizendo que a proposta dos livros sempre vem acompanhada de uma boa conversa. “Quando as pessoas entram aqui [na escadaria], elas têm vontade de falar”, solta. Sabendo disso, Marlete faz questão de tomar seu chimarrão na frente de casa e colocar em prática um conselho que recebeu de uma professora quando jovem: "Quer aprender algo? fala com as pessoas. Melhor coisa se todo mundo soubesse disso”.

24 de maio: um ponto de resistência que liga o passado ao futuro

Instalar a sede de sua companhia de dança flamenca “La Negra” na escadaria 24 de maio é para Ana Cristina Medeiros da Silva um caso “predestinado”. “Quando vim não conhecia direito a escadaria. Me apaixonei! E para minha surpresa o dia 24 de Maio é o dia da Santa Sara Kali, padroeira dos ciganos. E os ciganos têm toda relação com a minha arte do flamenco”, conta a dançarina e coreógrafa.

Além de ser um ponto de cultura no bairro, a escola espalha arte para fora das quatro paredes, com aulas e intervenções ao ar livre. “Eventualmente temos eventos na escadaria, e participamos com nosso grupo profissional”, conta Ana. O movimento contrário também ocorre. Ao fim do dia, por volta das 18h, conta a professora, pedestres que passam pelos degraus acabam chegando na porta da escola para espiar de onde vem o som das castanholas. O convite para assistir às aulas é oferecido.

Ana Cristina Medeiros da Silva é dançarina e coreógrafa na companhia de dança flamenca “La Negra | Foto: Mauro Schaefer

Mesmo com o curto período como moradora, é visível o entrosamento de Ana com o local. Na frente da escola, sob um sol escaldante de início de tarde, que beirava os 35 graus, ela nomeava os vizinhos mais antigos e exaltava a relação amistosa com todos.

As lajotas com frases e desenhos coladas nos degraus também são motivo de orgulho. Segundo Ana, elas ajudaram a colocar o lugar como um ponto turístico, sendo espaço de fotos e até gravação de comerciais. Mesmo com a manutenção frequente, feita pela artista Clarissa Nunes, que idealizou a intervenção, alguns degraus apresentam lajotas faltantes. A dançarina então deixa uma ideia para a próxima colagem: “uma lajota com os dizeres ‘Flamenco: a arte de servir, desfrutar, libertar e humanizar’.”

A voz da cidade no traço da artista 

"Às vezes o abacate ficava tão grande que caía e quebrava minha telha. Sabe o que a gente fazia? Comia o abacate! Sem briga.” / "A música impediu que eu fosse para o crime." / "A gente via muitos assaltos. Prensavam as pessoas contra a parede."

Algumas das frases usadas nas lajotas foram coletadas de depoimentos de moradores e transeuntes do local | Foto: Mauro Schaefer

Essas são algumas das frases gravadas nos azulejos coloridos dos degraus da escadaria. Elas foram selecionadas pela escuta sensível da artista plástica Clarissa Motta Nunes nas conversas com os moradores da 24 de Maio. “Foi um canal para dar voz para eles e, de certa forma, para quem passa por ali”, conta ela. Além dos depoimentos, os mais de 3 mil pequenos quadrados colados no concreto carregam frases de escritores renomados e desenhos autorais da artista gaúcha.

A colagem ocorreu em 2011, fruto de um projeto artístico em que a Clarissa foi selecionada. O momento contou com uma festa de inauguração, com roda de samba e uma placa descerrada em homenagem à artista. A intervenção inicialmente era para durar poucos meses, mas uma mobilização da Associação dos Amigos da Vinte e Quatro de Maio e Adjacências (AMIVI) junto a gestão municipal da época resultou na permanência da obra.

Galeria: veja fotos da instalação dos azulejos nos degraus

A artista conta que a violência urbana foi muito citada nos depoimentos que ouviu durante o projeto de pesquisa, há mais de 10 anos. “Tinha muito assalto ali, tanto que eu relatei isso também. As pessoas falavam coisas boas do lugar porque viveram desde a infância, mas também falaram do perigo.” A revitalização do trecho, que ganhou mais iluminação, inibiu a sensação de perigo, contam os moradores. Mas ainda há relatos de assaltos e temor de andar pelo local à noite.

De lá pra cá, a intervenção ganhou algumas manutenções. Mas mesmo assim, alguns dos desenhos foram sofrendo alterações por conta do desgaste natural do tempo. Em alguns degraus faltam lajotas, que moradores não sabem se caíram ou foram retiradas. O maior desejo de Clarissa é que alguma empresa adotasse o local, nem que seja uma ação específica, para investir numa manutenção inteira do trabalho e da estrutura do local e, assim, manter a escadaria 24 de Maio colorida por mais tempo.

Ouça os bastidores das entrevistas:

 

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