Eco Pila: conheça a moeda sustentável de Montenegro que pode ganhar espaço em Porto Alegre

Eco Pila: conheça a moeda sustentável de Montenegro que pode ganhar espaço em Porto Alegre

Iniciativas de moedas sociais incentivam reciclagem e educação no Rio Grande do Sul

Camila Pessôa

Projeto existe há mais de quatro anos

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Até o final do ano, a Associação do Comércio e Indústria da Restinga (ACIR) pretende trazer uma nova moeda para Porto Alegre. Trata-se do Eco Pila, criado em 2018 no município gaúcho de Montenegro. Durante toda a sua existência, o projeto já reciclou 300 toneladas de resíduos e ganhou uma notoriedade que o expandiu para mais dois municípios: Brochier e Pareci Novo. E, se tudo ocorrer como planejado pela ACIR, em breve também para a Capital. 

O eco pila é uma moeda de troca para recicláveis. Todas as quintas-feiras, na praça Rui Barbosa, em Montenegro, a população pode trocar qualquer tipo de material reciclável por eco pilas. Para papelão, papel e plástico ganha-se 0,20 eco pilas por quilo; para garrafas pet, 0,80; tetrapack, 0,10; lata, 3,50; e ferro e óleo de cozinha, 0,20. 

Moradores podem trocar seus materiais recicláveis na praça Rui Barbosa. Foto: ACI Montenegro/Pareci Novo / Divulgação

Cada eco pila equivale a R$ 1 e pode ser utilizado em qualquer um dos 55 estabelecimentos que aceitam a moeda em Montenegro e arredores. Na mão dos comerciantes, a moeda pode ser depositada, já convertida para o real, no banco Sicredi, parceiro do projeto. 

O eco pila pode ser definido como uma moeda social, que, apesar de ser chamada de moeda, funciona mais como um crédito. “A moeda social existe na medida que você tem uma comunidade que aceita essa moeda como instrumento de troca”, diz o professor da Escola de Negócios da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Gustavo de Moraes. 

As chamadas moedas sociais não podem ser consideradas, de fato, moedas, porque estas devem, por definição, cumprir três funções: ser um meio de troca (serve para trocar bens e serviços); servir como reserva de valor (é possível fazer investimentos com ela); e ser uma unidade de conta, ou seja, os preços dos bens no comércio são representados na moeda. Uma moeda social cumpre apenas a primeira função. “Mas o grande benefício é fomentar o comércio local, é uma forma de garantir demanda firme, que beneficia o empreendedorismo. Mas também há prejuízos, o consumidor fica limitado a um conjunto de produtos”, lembra Moraes.

O corretor de imóveis Alexandre Mello troca seus resíduos por eco pilas desde o início do projeto. Com esposa e três filhos em seu núcleo familiar, Mello acumula uma grande quantidade de lixo reciclável, que por vezes junta com o que é descartado por sua mãe. Entre os resíduos, os principais são garrafas pet, latas, plásticos, papelão e caixas de leite. “Toda semana eu vou”, diz o corretor. O projeto também ajudou na educação ambiental de seus filhos, hoje de 21, 16 e 14 anos, quando eram mais jovens e costumavam ir junto ao pai para o local de troca. 

“Hoje a gente estranha quando vamos a algum lugar, como a praia, e o lixo não é separado. A gente fica incomodado”, relata Mello. Ele ganha cerca de 15 eco pilas quando leva, também, os resíduos da mãe, e entre 6 e 7 quando troca apenas o material de seu núcleo familiar. A família aprendeu a separar corretamente o lixo e passou a reciclar mais após começar a trocar os resíduos pela moeda. 

Possibilidade de chegada na Capital

Foi de olho nos benefícios sociais, econômicos e ambientais que, no dia 26 de maio, a Associação do Comércio e Indústria da Restinga (ACIR) esteve em reunião com a Associação Comercial e Industrial (ACI) de Montenegro / Pareci Novo, fundadora do Eco Pila, para conhecer melhor a moeda e avaliar a possibilidade de adotá-la em Porto Alegre. “Estamos numa fase preliminar, procurando parceiros para viabilizar o projeto”, afirma o diretor da ACIR, Giovanni Moser. 

Segundo ele, o que causou mais interesse no Eco Pila foram as possibilidades de uma maior interação entre os moradores do bairro, fidelização de clientes em empresas locais conveniadas e uma maior educação ambiental, principalmente das crianças, com a visita de escolas e da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) para conhecer o projeto. “O lixo na Restinga é um grande problema”, diz Moser. “É difícil mudar no adulto, mas na criança isso faz toda a diferença”, completa. A organização também espera que a moeda ajude a ensinar educação financeira.

Replicando uma experiência que já deu certo em Montenegro, Moser espera evitar possíveis erros. “A gente vai abrir para a comunidade trazer o seu resíduo, pode ser de outros bairros, e ela vai gastar na rede de conveniadas com a ACIR”, explica. A ideia da organização é viabilizar o projeto até o final do ano. Moser acredita que a comunidade vai abraçar a ideia, já que ela é inovadora, traz pertencimento e engaja as pessoas.

Mas, para que isto seja concretizado, ainda é preciso superar desafios. “(Temos) a questão logística, de fazer com que as pessoas tragam os resíduos separados e limpos, a negociação de conseguir uma concessão da prefeitura para o local de troca”, explica Moser. Segundo ele, a ACIR deve negociar essa possibilidade de trazer a moeda com a prefeitura. O local pensado para fazer as trocas seria a Esplanada, localizada à frente da escola de samba do bairro. 

Outra questão é que o lixo é público e que, em Porto Alegre, a coleta seletiva é responsabilidade de cooperativas. “Então não queremos criar um conflito com a coleta seletiva, porque eles dependem dessa renda para sobreviver. Temos que discutir essa questão também”, pondera o diretor. 

O Surgimento da Ideia

Quando o núcleo socioambiental da Associação Comercial e Industrial (ACI) de Montenegro / Pareci Novo foi criado, o grupo analisou os problemas das cidades e constatou que um dos maiores deles era o descarte incorreto de resíduos. “E, como é um problema cultural, só muda se tem multa ou incentivo, então tentamos criar incentivo”, diz o presidente da ACI, João Batista Dias. A partir daí, a associação começou a procurar modelos de moeda por todo o Brasil, adaptando o que veio a ser a Eco Pila. O projeto foi viabilizado por uma parceria com a empresa recicladora Montepel, cujo proprietário é o próprio Dias, que recolhe os materiais. 

Cada cédula retrata elementos característicos da região. Foto: ACI Montenegro/Pareci Novo / Divulgação

“Criamos notas específicas. As figuras são situações aqui da cidade que fazem referência à região”, explica Dias. Em cada cédula há uma foto diferente: na de 0,5 há o Rio Caí; a de 1 traz o Morro São João; na de 5, o seminário jesuíta de Pareci Novo; e, na de 10, um cacho de bergamotas. Mesmo que a moeda tenha o mesmo valor que o real, as cédulas próprias da região fazem toda diferença. “O ponto de usar é mais a simbologia, porque ter um dinheiro diferente tem uma conotação socioambiental e chama atenção das crianças, muitas vezes ela vira o dinheirinho dos pequenos”, afirma Dias. 

E tudo é organizado por iniciativa privada. “Não queremos que o projeto vire um palanque ou que seja abandonado com as trocas de partido no governo”, afirma o presidente da ACI. O setor público está envolvido apenas na concessão da praça utilizada para as trocas. “É vantajoso para eles também porque isso ajuda o município a economizar, já que não vai precisar coletar tanto lixo”, lembra Dias.

Recentemente, o projeto passou a receber, também, resíduos orgânicos. Foto: ACI Montenegro/Pareci Novo / Divulgação

Ao longo do tempo, a empresa foi implementando mais itens entre os recolhidos. Depois de fechar uma parceria com outras duas empresas, o projeto passou a receber resíduos biodegradáveis para compostagem, estes sem remuneração. Hoje, o único item que não é coletado são lâmpadas. 

Em média, o projeto recebe três toneladas de resíduos por semana, ante os 200 quilos que recebia nos primeiros meses de implementação. De acordo com Dias, já há 70 mil eco pilas inseridos na economia local e um total de 300 toneladas coletadas durante toda a existência da iniciativa. 

“Acho que a consciência vem mudando aos poucos, porque uns vão incentivando outros a participarem, mas não é de uma hora para outra. A criança é uma mola propulsora, a informação dela vai para dentro de casa, e quando tu educa, ela tem um apego maior, e isso é levado para dentro de casa”, comenta Dias. Segundo ele, em média são atendidas 90 pessoas por semana na praça Rui Barbosa. 

Moeda social movimenta comércio local 

Todas essas pessoas que fazem as trocas viram clientes em potencial dos estabelecimentos locais credenciados para aceitar a moeda. O supermercado Mombach é um deles. O estabelecimento aceita o eco pila desde que a moeda começou a circular, no fim de 2018. “Decidimos adotar porque tem a questão da sustentabilidade, que é extremamente importante, e pelo legado de ensinamento que isso traz”, afirma o diretor administrativo do supermercado, José Francisco Mombach Friedrich. O estabelecimento não só aceita, como patrocina a moeda e incentiva seu uso.

O supermercado também teve ganhos econômicos. “Se uma pessoa tem três eco pilas, ela vai vir gastar isso aqui. Mas não vai gastar só isso, ela vai fazer mais compras”, explica. As vendas com a moeda também aumentaram. Enquanto em janeiro de 2020 foram coletados 320 eco pilas, em abril de 2023 foram cerca de 4,5 mil. Friedrich também destaca a facilidade de troca da moeda. “A gente consegue depositar os eco pilas no Sicredi e já cai em reais”, comenta. 

O eco pila tem um sistema para evitar falsificações, como o de moedas oficiais. “É uma moeda com um lastro bem legal, a gente nunca teve nenhuma dificuldade”, diz Friedrich, que afirma nunca ter coletado um eco pila falso.

A pizzaria Di Napoli é outro estabelecimento que entrou no sistema. Seu proprietário, Leandro Maders, conheceu o projeto por meio de uma campanha de divulgação da ACI. “Vi a campanha e fui atrás para saber como funcionava”, afirma. Para participar, bastou ir na associação e cadastrar os dados da empresa. “Tudo para ajudar o meio ambiente é bom, não teria porque não ajudar”, completa. Segundo ele, a pizzaria recebe dois ou três clientes por semana que utilizam a moeda e muitos deles conheceram o estabelecimento justamente por estar credenciado no projeto. Os clientes que mais usam o eco pila na Di Napoli são famílias, em especial com pessoas de mais idade, de 40 a 60 anos. “Os mais novos não aderiram tanto”, comenta Maders. 

Santiago também tem iniciativa para resíduos orgânicos

A prefeitura de Santiago seguiu uma linha parecida ao Eco Pila e criou sua própria moeda em junho de 2020, desta vez para a troca de resíduos orgânicos. É a Pila Verde. Em 16 pontos de coleta espalhados pelo município, os moradores podem trocar seus resíduos orgânicos pela moeda. A cada cinco quilos, ganha-se uma Pila Verde, que pode ser trocada de segunda a sábado nas Feiras do Produtor da cidade. “E lá, eles [usuários] vão comprar os produtos comercializados pelos produtores, como pão, alface e mandioca”, explica a secretária do Meio Ambiente de Santiago, Andriele Martins. 

Moeda pode ser trocada por alimentos em feiras espalhadas pelo município. Foto: Secretaria do Meio Ambiente de Santiago / Divulgação

Os produtores que vendem esses produtos e recebem as pilas verdes podem usá-las para adquirir os insumos necessários para a sua produção, como o próprio adubo produzido pela prefeitura a partir dos resíduos orgânicos coletados, além de mudas de hortaliças e árvores, sementes e até para a compra de horas de uso de máquinas da prefeitura para obras em suas propriedades, como construir açudes e arrancar tocos.  

Nos três anos de existência da moeda, foram recolhidas mais de 350 toneladas de resíduos orgânicos, segundo a secretária municipal. “E já distribuímos mais de 300 toneladas de adubo, isso gerou uma economia muito significativa para o município, com a redução do lixo gerado. Então é um ciclo que funciona entre a secretaria, o munícipe e o produtor rural”, acrescenta. 

Projeto produz adubo com resíduos orgânicos do município. Foto: Secretaria do Meio Ambiente de Santiago / Divulgação

A prefeitura de Santiago, com o sucesso da pila verde, resolveu criar uma outra modalidade: a pila azul, para materiais recicláveis. Há uma tabela de valores para cada material e, conforme essa tabela, as pessoas recebem a Pila Azul e podem desempenhar atividades sócio-esportivas, como aulas de zumba, de aeróbica, hidroginástica, aula de futebol, utilização de quadra de esporte e todas as áreas esportivas do município. “Ele começou recentemente e no primeiro mês a gente recolheu 22 toneladas de resíduo reciclável, que fizemos doação direta para as associações de catadores do município”, conta Andriele. 

“O município não utiliza o lucro desse material reciclável, ele é repassado para o catador”, enfatiza. “Quanto mais lixo que deixarmos de enviar para o aterro sanitário melhor. Vamos ampliar as possibilidades de troca dele para que possamos tornar cada vez mais atrativo”, acrescenta. Com o projeto da Pila Verde, o município também ganhou, no ano passado, uma premiação de boas práticas da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs). “E a Pila Verde hoje é ‘visitada’ por todo o Estado. As pessoas vêm aqui no município conhecer o funcionamento do projeto. Muitos municípios já estão implantando em suas cidades e fizemos um documentário na TV da Fiocruz do Rio de Janeiro”, comenta Andriele.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895