Em meio ao luto, Muçum e Roca Sales vão aos poucos sendo reconstruídas

Em meio ao luto, Muçum e Roca Sales vão aos poucos sendo reconstruídas

Municípios são um dos mais afetados por pior tragédia climática do Estado

Felipe Faleiro

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Circulando nessa segunda-feira pela manhã em meio às ruínas do Cemitério Municipal de Muçum, no Vale do Taquari, Alcides Liberato Pereira, 70 anos, lembra recorda bem dos sete sepultamentos que fez no local, todos de vítimas da maior tragédia climática do Rio Grande do Sul, há 20 dias. Após este período, o cenário nos municípios do epicentro da tormenta, que deixou 49 mortos até agora, segue sendo de uma verdadeira guerra, mas a população demonstra resiliência e força para voltar às atividades da forma possível.

De lá para cá, algumas ruas foram limpas e acessos foram construídos, porém muitas estruturas continuam comprometidas, entulhos estado por toda parte, em menor quantidade do que há alguns dias, e a alma desta região segue profundamente ferida. “Aqui é um município pequeno, e todo mundo conhece todo mundo. Jogava cartas com um senhor que agora está enterrado ali. Ele dizia que nunca pegaria enchente na casa dele. Mas aqui é um povo muito generoso. 99% do comercio perdeu tudo, não teve um banco que a água não pegou”, disse ele.

Alcides enterrou filho e pai da mesma família, e teve de retirar um dia após o enterro o corpo da mulher apontada como a mãe, pois se tratava da pessoa errada. A mulher apontada como a mãe segue desaparecida.

Alcides perdeu familiares na tragédia | Foto: Maria Eduarda Fortes

Nos acessos a cada cidade, uma faixa agradece aos voluntários que se dedicam até hoje às reconstruções. As indústrias aos poucos estão retomando as atividades. Na segunda-feira, uma fábrica de alimentos voltou com o abate parcial em Encantado, e em Roca Sales, uma calçadista retornou às atividades parcialmente. Ainda em Muçum, nove galpões do município estão repletos de doações, que ainda não param de chegar a todo momento, bem como a população segue em busca de auxílio. Materiais como itens de limpeza e roupas estão em número suficiente na cidade.

“Dentro das possibilidades de uma catástrofe, estamos evoluindo bem. Superamos etapas iniciais, com o restabelecimento de serviços essenciais como comunicação, água e luz. Estamos sofridos, mas as doações estão vindo de todas as partes do Brasil”, define o prefeito Mateus Trojan.

No final de semana, o governo do estado concluiu a vistoria na área urbana do município e levantou 119 residências destruídas pela cheia, algo definido por ele como “apavorante”. 80% da cidade foi arrasada pela água, que superou 21 metros em Muçum, na região mais alta, e 29,60 metros em Estrela, na parte mais baixa.

A professora Lucilene Lucca Dal Molin, que atua em duas escolas do município e mora no bairro Cidade Alta, estava pela manhã separando itens e ajudando como voluntária. Ela contou que, quando a enchente chegou, ela correu para a casa dos sogros, e de lá conseguia ver a residência dos pais, Valmor Ricardo Lucca e Celestina Zamboni Lucca, que precisaram subir no telhado para fugir da inundação. “A água estava a 30 centímetros deles. Eles se agarraram no telhado até o outro dia, quando os Bombeiros vieram resgatá-los”, disse Lucilene, que viu três vizinhos perderem a vida na tragédia.

“Isso faz com que venhamos para cá, ouçamos histórias e faz com que vejamos que todo mundo está lutando para sobreviver”, afirmou ela. Próximo dali, a cozinheira Loreci Berá estava com duas filhas, Emanuelly, 8 anos, e Isabelly, 5, de um total de cinco. As crianças corriam pelo ginásio com brinquedos que haviam coletados de sacolas próximas. “Na minha casa não pegou a enchente, porém estou pegando algumas coisas para meu pai, que é acamado. Aproveitei e peguei uns brinquedos para elas, que não têm noção do que está acontecendo”, comentou ela. “Gostei muito da coroa”, disse a menina maior, vestindo uma tiara no cabelo, enquanto a mais jovem segurava pequenas onças de pelúcia.

Roca Sales

O município vizinho de Roca Sales, também devastado pela enchente, vive uma situação muito parecida. Na área central, foram montados nos três ginásios locais depósitos de roupas, materiais de limpeza e alimentos, respectivamente. O primeiro deles, e que está repleto de vestimentas em caixas e mesas, é gerenciado pela professora Jéssica Maria Freisleben. Moradora do Centro, ela conta que foi pouco afetada pelo alagamento, porém o isolamento passou a preocupar a família, assim como aos demais habitantes.

“Quando pudemos descer para observar, ou talvez procurar o pessoal do resgate, não encontrávamos ninguém. Quando achávamos amigos, familiares e conhecidos, era aquele sentimento de alívio. Aos poucos fomos descobrindo ter havido pessoas que passaram doze, e até quatorze horas em cima dos telhados porque o resgate não chegou para todo mundo”, relatou ela.

Jéssica recorda de saber de uma senhora que perdeu os dois netos na enchente e de ver outra criança, de cerca de seis anos de idade, que viu brincando de simular uma escola. “Questionei se ela estava com saudades do colégio e ela disse que não, porque os amiguinhos estavam mortos. Aí não consegui dizer mais nada”, prosseguiu, sem esconder a emoção.

O coordenador do ginásio dos itens de limpeza é Jader Marcelo Vieira, que trabalha na construção civil e é ex-militar, responsável, segundo ele próprio, por mais de 40 salvamentos. “Já caiu a ficha, mas sentimos que a missão tem que continuar. Batizamos este processo aqui de reconstrução. Vai levar bastante tempo para reconstruirmos a cidade, mas precisamos estrategicamente atender as pessoas que necessitam realmente. É muito gratificante ver que todo mundo se uniu para ajudar e as doações virem de toda parte”, disse ele. 

Roca Sales precisa de gente para ajudar, enquanto segue ativa a rede de solidariedade. Na segunda-feira, por exemplo, chegou ao município um ônibus repleto de voluntários do município de Vanini. “Ainda tem muito trabalho a ser feito”, salientou Jader. O pedreiro e agricultor Marco Antônio Lorenzan, morador da localidade de Linha Marquês do Herval, no interior de Roca Sales, estava junto aos voluntários nos ginásios recolhendo itens. “Perdemos todos os móveis, a água subiu até 2,40 metros acima do salão que havíamos construído há pouco tempo. E toda a ajuda que o município e os órgãos estão oferecendo é bem-vinda”, disse ele.

No final da tarde de segunda, encerraram as atividades do abrigo no ginásio do Parque do Imigrante, em Lajeado, local que chegou a receber a visita dos ministros Paulo Pimenta, da Secretaria de Comunicação Social, e Waldez Góes, da Integração e Desenvolvimento Regional. Ambos, mais o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, retornam ao Vale nesta quarta-feira. Horas antes do fechamento do ginásio, quatro famílias seguiam no local, aguardando definição de pagamento do aluguel social, ou encaminhadas à Casa de Passagem Shalon, com quem o município tem convênio. Entre elas, estava uma de haitianos.

A Prefeitura criou ainda o Ceprac (Centro Especial de Apoio aos Atingidos pelas Cheias), para oferecer serviços emergenciais, como acesso ao Cadastro Único e ao Programa Volta por Cima, entre outros benefícios sociais. 

Moradores do Centro, o auxiliar de açougueiro Leandro Altemann e a auxiliar de produção Ana Beatriz da Rosa Farias, casados há três anos, estavam no Ceprac à tarde e disseram que também perderam o que não conseguiram colocar em um pequeno caminhão pouco antes da enchente atingir a casa da família. “O principal, que é a nossa vida, mantivemos. Perdi pessoas conhecidas, e até hoje estamos morando de favor na casa da minha madrasta. Viemos agora porque não tínhamos como vir antes. Eu fui trabalhar e ela ficou cuidando das crianças. Temos que conseguir coisas como guarda-roupa e cama para as crianças”, relatou ele, que tem dois filhos com Ana, de quatro anos e um ano e cinco meses.

O coordenador da Defesa Civil Municipal de Lajeado, Gilmar Queiroz, olhava com certa preocupação o monitor de seu computador na sede do órgão, em outro ponto do parque. Segundo ele, havia sido recebido um novo alerta da Defesa Civil Estadual que chuvas intensas na Serra, dentre tantos que preocupam a população nas últimas semanas, o que elevava a possibilidade de um repique no rio Taquari. “Ninguém esperava um volume de chuva desta magnitude. O que aconteceu foi totalmente fora de todos os contextos. Foi uma catástrofe que abalou não apenas o Vale, mas o país todo. Ficamos tristes com a situação, porém as pessoas continuam tentando se levantar. Temos que evoluir no sentido de aprimorar nossos técnicos para monitoramento e tecnologia, e temos bastante trabalho daqui para a frente”, afirma.

O prefeito de Estrela e presidente da Associação dos Municípios do Vale do Taquari (Amvat), Elmar Schneider, afirma que, passados vinte dias do início da tragédia, começa agora uma “fase tão desafiadora” quanto os estragos causados pela tormenta: a reconstrução, a retomada e a volta à normalidade. “O que podemos trazer de aprendizado até aqui é a necessidade de termos uma Defesa Civil Regional mais profissional, capaz de se antecipar aos momentos de crise e dar uma resposta mais rápida e eficaz”, diz ele.

Schneider ainda comenta que é preciso ampliar os debates sobre a melhoria das estruturas locais, como uma nova ponte sobre o Taquari. “Por outro lado, tem sido fundamental o apoio recebido até aqui dos governos do Estado e União. O que precisamos, agora, é fazer com que as pessoas e os empreendedores tenham acesso às linhas de crédito anunciadas e deem a volta por cima, retomem o protagonismo de suas vidas e de seus negócios”, observa o presidente da Amvat.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895