Histórias da Porto Alegre alagada: Giovanna, a menina que lia livros
Garota especial perdeu a casa na enchente do bairro Sarandi; ela completa 8 anos nesta segunda-feira e tem a literatura como única forma de conexão com o mundo

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Lama, destroços, limpeza e tentativas de recomeço surgem a todo instante em Porto Alegre. Já fora, ou ainda em meio a água e sujeira, as calçadas de bairros como Centro Histórico, Floresta, Humaitá, São Geraldo e Sarandi viraram amontoados de memórias.
Cada pilha de pertences deixados nas portas das casas, mesmo destinada ao lixo, permanece dotada de afeto, de cuidado, das alegrias e das tristezas vividas por seus proprietários até o literal divisor de águas de 3 de maio. No entanto, algumas lembranças saltam aos olhos.
No domingo, a professora Denise Santos de Oliveira começou a limpar a casa onde mora, na avenida 21 de abril, no Sarandi. Um mutirão feito por amigos carregou para a rua móveis estragados, roupas e uma quantidade significativa de fantoches feitos com tecido. O colorido dos bonecos inutilizados contrastou com a lama preta que recobria o asfalto e ilustrou uma história da qual a educadora não gostaria de ser personagem.
“Eu trabalho com contação de histórias afro e dos povos originários. Eu tinha muito conteúdo, roupas, fantoches; foi tudo fora”, lamenta.
Metros adiante, havia um outro amontoado de objetos perdidos para a enchente, tão especial quanto capaz de identificar a quem pertenceram. Uma mochila apontava para alguém em idade escolar. Uma sombrinha e uma bolsa sugeriam a presença de uma mulher adulta. Junto, dezenas de livros infantis e um de ficção indicavam que aquelas pessoas viviam em um lar onde o hábito da leitura se fazia presente. Perdido no barro, quase ao lado, um porta-retratos atribuiu o primeiro rosto àquela tragédia pessoal, que em seguida ganhou nome a partir de um copo cor-de-rosa personalizado com letras cursivas pretas. Estávamos diante da menina Giovanna.
Uma rápida busca na vizinhança revelou a mãe da garota, a Deise Santos Rodrigues, 52 anos. Ela tem outros quatro filhos, é pedagoga por formação, como se orgulha em destacar, e diarista por necessidade. O motivo, exalta, é nobre: tempo para dedicar ao cuidado da filha caçula, “a Gio”. São dela e da filha aquelas recordações tomadas pela água.
A menina nasceu prematura e logo diagnosticada com Síndrome de West, que ocasiona constantes crises epilépticas. Aos 15 dias de vida, foi detectada a meningite bacteriana, que ocasionou hidrocefalia; por consequência, ela tem o lado direito do corpo imobilizado.
“Com um dia de vida, a Giovanna teve que operar, pois o intestino foi perfurado ainda dentro do meu útero. Ela saiu da cirurgia com uma bolsa de colostomia e permaneceu com ela por três meses”, recorda Deise.
As consequências para Gio são permanentes. Ela apresenta atraso global do desenvolvimento e recentemente demonstrou características que se enquadram no espectro autista. “É uma verdadeira guerreira, em 10 dias, passou por cinco cirurgias cerebrais. Aos seis meses teve que fazer uma operação de emergência, colocou uma válvula de drenagem na cabeça, por causa da hidrocefalia, é o que a mantém viva até hoje”, diz.
Giovanna não fala e não se locomove sozinha. A forma dela compreender o mundo externo é pelo contato com os livros apresentados pela mãe. São texturas, imagens, formas, histórias narradas pela voz e pelo amor materno. “Eu digo que a minha filha lê e aprende com o coração”, afirma Deise, enquanto ajoelha na calçada e folheia os livros molhados e já sem serventia para estimular o desenvolvimento da filha.
Junto da coleção de livros inteiramente perdida, estavam uma boneca de pano e a fotografia de Giovanna. Enquanto fala, a mãe esfrega o vidro do porta-retratos, removendo a lama que encobre o rostinho da a menina. Fixa os olhos na imagem e revela que nesta segunda-feira a caçula completa 8 anos, exatamente um mês do início do drama que abate Porto Alegre.
Nem mesmo a cadeira de rodas, indispensável para a Gio, sobrou. Deise está com a filha e o marido na casa de uma família para qual trabalha como diarista e sem dinheiro para recomeçar. Ainda assim, não perde o otimismo.
"Graças a Deus, estamos vivos e acredito que logo tudo vai passar. De aniversário, quero oferecer esperança de dias melhores. Com fé no coração, a gente vai conseguir, este é o maior presente que quero dar a ela”, completa.
Este material conta com outras três partes:
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