Indígenas reivindicam território em meio a processo de reintegração de posse em Porto Alegre

Indígenas reivindicam território em meio a processo de reintegração de posse em Porto Alegre

Disputa está na Justiça, e empresa quer área já escriturada no Morro Santana para a construção de edifícios

Felipe Faleiro

Cacica Gah Té é a grande liderança da comunidade, e chegou a fazer greve de fome em 2022 contra reintegração

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Em meio à exuberante natureza do Morro Santana, o mais alto de Porto Alegre, existe uma comunidade formada por 45 membros da etnia indígena Kaingang e outros dois da etnia Xokleng, que começaram a ocupar a área em outubro de 2022, em território ainda não demarcado. Na mesma área, a empresa Maisonnave Companhia de Participações prevê a construção de um grande condomínio com 11 edifícios de 714 apartamentos e 865 vagas de estacionamento.

Para isto, busca a reintegração de posse da mesma, algo que, na visão dos indígenas, contraria o caráter ancestral da área e prejudicaria a fauna e as espécies vegetais do local. A disputa está atualmente na 9ª Vara Federal de Porto Alegre, e a movimentação mais recente pede a desocupação voluntária da área pelos indígenas até o próximo dia 9 de fevereiro, conforme decisão da juíza federal substituta Clarides Rahmeier, datada do último dia 11 de janeiro. Eles dizem, contudo, que vão permanecer, pois seus antepassados se estabeleceram e foram sepultados ali.

A ação de ocupação recebeu o nome de Retomada Multiétnica Kaingang-Xokleng-Popular Gãh Ré, que vive em harmonia. “A maioria das pessoas que estão aqui são mulheres e crianças. E esta é uma das únicas comunidades com liderança feminina, e em que há muito respeito de todos por ela”, diz a conselheira Prẽ. A liderança referida por ela é a cacica Gah Té, tia de Prẽ, e que orienta os destinos da comunidade. Em um dos atos mais significativos para os indígenas, Gah Té permaneceu em greve de fome durante seis dias, em dezembro de 2022, até que uma decisão anterior, favorável à Retomada, fosse publicada pela Justiça.

“Sempre quis que meu povo tivesse um local para criar seus filhos e netos. Quando eu vim para esta região, a estrada da Protásio Alves era de chão batido. Mas nunca quis entrar no mato, porque respeitava os bichinhos”, conta a cacica. Até então, os indígenas estavam em outra residência no entorno. A ocupação, segundo ela, iniciou na esteira da presença de um morador do Lami que cuidava de abelhas na mesma área. Legalmente, o local pertence à Maisonnave Companhia de Participações, porém estava praticamente desocupada há mais de 40 anos. 

No começo da década de 1980, o território em questão foi hipotecado ao Banco Maisonnave, hoje liquidado, e sua propriedade passou à companhia de participações. “Quando soube que queriam construir aqui, pensei na água que sai da terra geladinha. Perguntei para meu povo se eles estavam dispostos a ficar na beira da estrada. Disseram que não. Aquele banco precisa voltar de onde veio. Não importa se tem escritura. Ele não comprou de mim a terra. Ela é do Brasil”, comenta Gah Té. 

Ocorre que o Morro Santana foi a primeira área da região a ser colonizada por Jerônimo de Ornellas, mas antes, era considerado território indígena. Séculos mais tarde, passou a ser área de preservação ambiental (APP), em que há nascentes como uma das que formam o Arroio Dilúvio, por exemplo. “Onde o índio está, se preserva a natureza”, aponta Prẽ, que diz aguardar a estruturação do Ministério dos Povos Indígenas, já assumido por Sônia Guajajara, para levar a questão a Brasília.

No mesmo dia em que sua tia avisou que faria a greve de fome, um bugio apareceu na área. “Nunca tinha acontecido, mas sempre ouvíamos a voz dele. É uma indicação de que a natureza nos apoia”, conta ela. Hoje, a área conta com árvores como pinus e eucaliptos, que sugam a umidade da terra e a deixa mais seca, porém ainda fértil para culturas a exemplo do milho, plantado no início da ocupação e cujos pés estão com altura superior a dois metros. Para o futuro, Gah Té afirma que quer deixar um bom exemplo aos demais membros da comunidade.

“Nossa vida está nas mãos de Deus, que é nosso Criador. Espero que a sociedade nos enxergue. Aqueles que tanto nos exploraram não podem fazer isto de novo”, afirma. A comunidade pede doações de lonas para manter a proteção nas barracas em que cozinham. A chave Pix é o CPF 349.022.360-87 (Iracema Nascimento, nome original de Gah Té). A reportagem fez contato com a equipe de advogados da Maisonnave Companhia de Participações, mas até o momento, não houve retorno.


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