O clássico prédio do antigo Cine Astor, onde Hollywood foi projetada em Porto Alegre

O clássico prédio do antigo Cine Astor, onde Hollywood foi projetada em Porto Alegre

A série Redescobrir a Cidade vai contar a história de lugares de Porto Alegre por uma lente diferente: a memória

Brenda Fernández

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Resumo da matéria:

A ampla fachada edificada numa das esquinas mais movimentadas do bairro Floresta destoa visualmente dos arredores. O projeto arquitetônico com detalhes clássicos e barrocos remete a um passado que projetou Hollywood em Porto Alegre, um local que por décadas foi o ponto de lazer da região, um dos principais cinemas de calçada de Porto Alegre: o antigo cinema Astor.

As extensas filas desenhadas pela calçada estreita da Benjamin Constant, contornando a esquina da Cristóvão Colombo, ficaram na memória de frequentadores e comerciantes do entorno. Exatos 30 anos atrás, o Astor encerrava as atividades após uma série de ajustes e modernizações para fazer frente ao mercado de VHS, a TV por assinatura e aos cinemas de shopping.

Para chegar na estrutura conservada e tombada como de interesse social e cultural, o caminho foi longo e de abandono. Os cartazes foram retirados e as sessões encerradas em 1993. O Astor não era um caso isolado. No mesmo período outros cinemas de rua entregavam salas e prédios na cidade.

Nesta época, ao menos 20 cinemas de rua mantinham programação em diversos bairros da Capital, conforme levantamento que consta no livro “The End: Cinemas de Calçada em Porto Alegre (1990-2005)", do jornalista e pesquisador Cristiano Zanella. O ano de 1993 despontava não só com o fechamento do Astor, mas também de outros três cinemas. No ano seguinte, mais oito cerravam suas portas. Atualmente, a cidade conta apenas com o Capitólio, Cine Bancários e as salas de cinema da Casa de Cultura Mário Quintana, todas na região central.

A saída do Astor de cena não ganhou espaço nos jornais. Em 28 de novembro de 1993, ele apenas deixou de integrar a programação de cinema, que já englobava os de shopping centers, veiculada nos jornais da época.

Após a última exibição, a comunidade viu a estrutura definhar por 28 anos. Neste período, por trás de uma fachada longe de ser considerada conservada, funcionou um estacionamento privado. Os tapumes colocados para proteger a estrutura rapidamente ganharam cartazes e escritos, ampliando a cena de abandono e descaso.

Apenas em 2021, a imponente estrutura ganhou novos donos e uma repaginada, abrigando até os dias de hoje um hotel. O entra e sai de veículos em busca de conforto e turismo na cidade.

O bairro Floresta também integra – ainda que timidamente – uma área chamada de 4º Distrito, um conglomerado de bares e casas noturnas. O projeto, assinado pelo governo municipal, é de que a região seja conhecida como o encontro boêmio de novos empreendimentos. Por ordem legislativa, alguns destes lugares ainda mantêm as características arquitetônicas. Uma delas é o também antigo cinema Presidente, a poucos metros de distância do Astor, no mesmo quarteirão.

• GALERIA: veja o antes e o depois do prédio do antigo cinema Astor

GALERIA: imagens mostram como está hoje o prédio que abrigou antigo cinema

Instalado entre os dois antigos cines, o restaurante Pampulhinha presenciou desde 1971 a movimentação cultural no bairro. Filha do proprietário, Cristiana Pinheiro tinha 17 anos na época e lembra das filas para comprar ingresso. Ela mesma foi algumas vezes, já que ficava próximo ao comércio da família. “Acho que vi o filme E.T., quando foi lançado. Eu adorava! Era bonito! Tinha uma parte que vendia balas, chocolates e pipoca. Como agora (nos cinemas atuais), só que era uma coisa antiga. Parecia aquelas coisas de filmes”, lembra com nostalgia.

Do outro lado da rua, está o bar e restaurante de Ivo José Locatelli. As inúmeras mesas e bancada recebiam as famílias e jovens que iam ao cinema e paravam ali para fazer um lanche. Ele lembra com saudade da vida que tinha naquela avenida há 30 anos e diz que a região nunca mais viveu nada parecido. “Eram filas todos os dias. Elas ocupavam toda a calçada e dobravam na rua Olinda. O movimento agitava a rua. Mas depois foi indo, morrendo, parando, e ficou aquele lugar abandonado.”

Quem acompanhou a ascensão dos cinemas de perto ou apenas sentou em uma das 707 "modernas" poltronas, mais de uma vez, lembra com nostalgia de uma época em que tudo parecia mais mágico e, por isso, mais fácil.

Foto: Ricardo Giusti 

Do lado de fora: o hall e a magia da bomboniere

Os cinemas de calçadas estavam longe de representar só um espaço de lazer. Para Fabiano Grendene, que nasceu e até hoje reside próximo ao antigo cinema, o Astor era uma extensão de casa e, por isso, marcou experiências sociais e pessoais. Uma delas foi a transição entre a infância e a juventude ao fim da década de 80. Ao passo que via na programação que o cinema de aventura e fantasia abria também espaço para longa-metragens mais reflexivas e contestadoras, identificava seus interesse pela sétima arte expandir.

“A bilheteria ficava na calçada. Eu chegava, comprava ingresso, passava por uma porta grande e ficava esperando no saguão”, relembra o agora pesquisador e coordenador de cinema da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. No espaço que separava o público do telão ficava uma das magias do Astor: a bomboniere - nome hoje pouco usado.

Próximo à porta de entrada para a sala de cinema, uma espécie de relógio marcava o tempo faltante para o término da sessão anterior. Enquanto a hora não chegava, já portando o ingresso, Fabiano e os amigos se distraíam com guloseimas adquiridas na bomboniere. Na época, a Coca-Cola também era uma febre nestes lugares.

A última vez que Fabiano esteve nas cadeiras do Astor para assistir a uma sessão de “The Doors” (1991), longa sobre a ascensão do vocalista Jim Morrison e a banda de rock norte-americana. Neste dia, já se sabia que um dos cinemas mais queridos da cidade fecharia as portas - o que aconteceu em 1993. “Eu tinha entre 16 e 17 anos. Fui ver o filme com minha mãe. Eu lembro que o cinema também impulsionava assuntos sobre comportamento na família”, conta o docente.

Um marcador que funcionava como uma espécie de “relógio” sinalizava quando a sala estava pronta para projetar a próxima sessão. A sensação de estar dentro daquele espaço ocupa hoje grande parte da memória do porto-alegrense. “A sensação física que tenho era de um lugar muito confortável. O espaço te abraçava. A experiência era completa, não tinha essa coisa de escolher a poltrona, por exemplo”, lembra com uma nostalgia visível nas palavras e nos olhos. Fabiano cita ainda que, diferente das salas atuais, a posição das cadeiras obedecia uma organização vertical, que dava mais profundidade. Lembra ainda que a qualidade de som que ecoava dos longas “E.T. O Extraterrestre” e “Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida”.

A última sessão do Astor

Quando soube pelo jornal que o Astor ia encerrar as atividades, Danilo Fantinel não teve dúvidas: veria a última sessão. Mesmo jovem já sabia o que o fechar de portas do cinema do seu bairro significava. “Eu estava lá na última noite. Me lembro que eu comecei a sessão sozinho e logo depois chegou um casal. Depois algumas pessoas foram aparecendo. Era pouca gente.” O esvaziamento da sala mostrava a mudança radical na procura pelo cinema de rua frente a diversas novidades da época: o cinema de shopping e a popularização do VHS e da televisão por assinatura.

Para o jornalista, a sensação daquela noite foi de nostalgia e tristeza. “A gente sabe que o cinema reunia bastante público. Mas no fechamento era pouquíssima gente, como aconteceu no fechamento de outras salas. Quem estava lá era para prestar essa homenagem ao prédio, a sala e, claro, ao pessoal que fazia acontecer o cinema: projecionista e o pessoal da bilheteria”, conta Fantinel.

Tamanho o impacto na época, Fantinel consegue descrever até hoje os detalhes da sala de cinema. “Era enorme! Apesar da redução do número de poltronas, era uma sala gigante.” O corte no número de cadeiras a que ele se refere ocorreu na obra de modernização do local, onde reduziu mais de 300 lugares.

Ele segue descrevendo: “a sala tinha um declive que ajudava muito na visualização do filme, para as pessoas não ficarem muito próximas, com a cabeça atrapalhando. Diferente do que são as salas de cinema hoje.”

As sensações que o velho Astor provocava foram uma espécie de farol para Fantinel, que hoje trabalha com crítica e docência na área de cinema. “Tenho uma formação de cinema dentro da sala de cinema”, conta orgulhoso ao enumerar os filmes que viu projetado numa das maiores telas que já viu. Nas primeiras vezes, com 10 anos, acompanhado dos pais e tios em sessões à tarde. Nos últimos anos de funcionamento do cinema, no entanto, ele ganha gosto por frequentar sessões à noite, com amigos.

GALERIA: conheça os cinemas de rua em atividade em Porto Alegre

A sensação de “O Exterminador do Futuro 2” no Astor

A última vez que Lauro Marcelo Roth Arreguy viu o cinema Astor transbordar de pessoas, com filas extensas na rua, foi quando “O Exterminador do Futuro 2” (1991) chegou na programação. “Acho que o ano era 92 porque os filmes demoravam para estrear em Porto Alegre. A fila era enorme pra chegar na bilheteria, que era uma janelinha bem pequena. Só consegui assistir na segunda semana de exibição”, conta o músico e empresário.

Sua iniciação no mundo da sétima arte, no entanto, foi ainda mais cedo, comprando ingresso para ver “Os Trapalhões” na companhia de sua mãe e seu irmão. “Depois com 10-12 anos comecei a frequentar sessões mais noturnas, seis horas da tarde. Íamos de grupo de amigos ver ‘A Hora do Espanto’ e ‘A Mosca’.”

Uma das recordações que guarda com mais carinho do lugar é da primeira vez que viu a divulgação do longa de terror “A Hora do Espanto” na vitrine do cinema. Hoje conta rindo, mas em 1986 o sentimento era de medo ao ver o enorme cartaz estampado na janela do Astor. “Era um cartaz de uma vampira com os dentes enormes e atrás tinha uma casa na penumbra. Eu passava na frente, até mesmo de carro, e virava a cara porque tinha muito medo. Era horripilante”, lembra. Só que esta história teve uma reviravolta. Anos depois, Lauro não só assistiu ao filme como se apaixonou pela história de vampiro. Hoje o cartaz está emoldurado na sua casa.

Uma experiência cinematográfica comunitária

Quando chegavam na bilheteria do Astor já estavam em seis ou sete pessoas. A concentração do grupo de amigos do jornalista Danilo Fantinel, no entanto, nem sempre tinha um ponto definido. Era mais simples que isso: os amigos saiam do bairro Higienópolis e iam se buscando em casa; a começar com os que moravam mais longe até o que estava localizado mais próximo do cinema. “Foi realmente uma experiência cinematográfica comunitária. E era muito legal porque a gente saía da sala de cinema e voltava para casa conversando sobre o filme”, lembra o jornalista. Diferente do que acontece hoje. “Você sai da sala de cinema com uma emoção e entra num ambiente completamente diferente, que não compactua que não dialoga em nada com aquilo que a gente estava sentindo”, compara. “No cinema de calçada você sai da sala direto para o ar livre. Pode pensar melhor sobre o filme caminhando na rua.”

Com a ascensão dos cinemas de rua e a rápida multiplicação de salas pela cidade, era possível dizer: é o cinema do meu bairro. Em alguns casos, como é o do Floresta, dois cinemas - um do lado do outro. Só que essa afirmação de pertencimento não era apenas geográfica.

“Tínhamos a sensação de que as salas eram nossas. Parece que como elas estavam no nosso bairro, rua, em que a gente passava a todo momento, em que vivemos, em que crescemos, era nosso ambiente de origem. Parece que o cinema era mais nosso do que hoje em dia”, relaciona com os cinemas situados dentro de shopping.

Fabiano lembra quando o fechamento dos cinemas começou a ser notícia nos jornais. “Chegou um momento em que a gente começou a ter uma espécie de discurso sobre a violência, mercado do HVS, de cinema em shoppings. Temos muitas vezes uma adesão da falsa novidade, que representaria o futuro”, destaca o professor de cinema. “A gente tem essa ideia de que o bairro morre um pouco quando o cinema acaba. Ficamos um pouco órfão.”

Mesmo com as salas de rua hoje existentes, a relação entre o lugar e a cidade se transformou. Hoje são espaços frequentados por pessoas de diversos bairros, que sabem da importância de seguir ocupando aquelas poltronas. Um público que sabe que a magia ainda acontece.

 

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Correio do Povo
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