Casa Eléctrica: o futuro incerto do imóvel que colocou Porto Alegre no mapa da indústria fonográfica

Casa Eléctrica: o futuro incerto do imóvel que colocou Porto Alegre no mapa da indústria fonográfica

Imóvel tombado pelo município está em ruínas e espera o desenrolar na justiça para ser restaurado

Brenda Fernández e Matheus Chaparini

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Resumo da matéria:

Savério Leonetti foi o responsável por tonar Porto Alegre um centro musical
História da Casa Eléctrica já foi retratada em filme e livros
Ministério Público pede medidas emergenciais no restauro do imóvel
Restauro da imagem é viável, defende arquiteto
Escute o primeiro tango prensado na América Latina, El Chamuyo, gravado na Casa Eléctrica
Veja fotos atuais do imóvel, que sofre a degradação do tempo

A casa que abrigou a primeira fábrica de discos do Rio Grande do Sul e a segunda da América Latina está praticamente apagada. O imóvel localizado na avenida Sergipe, no bairro Glória, está encoberto por árvores, lixo, cercas e um extenso muro. Para identificar a olho nu a casa que tornou Porto Alegre um centro musical é preciso espiar com esforço. A estrutura estilo chalet, construída na virada do século passado, está em ruínas. Uma árvore rompeu o concreto e adentrou o cômodo, janelas estão quebradas, falta uma parte do telhado. Os únicos sinais de movimentação no terreno são a presença de um carro no pátio e um cachorro que faz a segurança do local.

O número 220 da avenida Sergipe virou referência em 1913 quando o imigrante italiano Savério Leonetti chegou a Porto Alegre e instalou no endereço um maquinário para gravação e prensagem de discos. Com os equipamentos trazidos da Alemanha, ele lança o gramofone nacional com a marca “A Eléctrica”. Os primeiros discos gravados na capital gaúcha e prensados na Europa foram lançados naquele mesmo ano sob o selo do “Disco Gaúcho”. A Casa Elétrica assim se tornava a segunda fabricante de discos do Brasil e na América Latina, atrás da Casa Edison, no Rio de Janeiro.

A história do período áureo da fábrica, que durou menos de uma década, é conhecida pela vizinhança. Alguns moradores acompanham há anos a degradação do local, os boatos de restauro e até mesmo de demolição do imóvel. Um deles defende que as ruínas deem espaço para uma praça ou um museu da história da Casa Elétrica. Uma outra moradora, que reside ao lado do imóvel abandonado, reclama que o espaço é um chamarisco para usuários de drogas.

Ricardo Eckert pisou na Casa Elétrica em 1988, em uma visita enquanto representante comercial. No local, funcionava uma empresa de instalações elétricas. Mas foi alguns anos depois, durante uma conversa numa mesa de bar com amigos, que recebeu as primeiras informações sobre a história do imóvel.

Em 21 de agosto de 2014, ocupava uma das cadeiras da Sala Eduardo Hirtz, na Casa de Cultura Mário Quintana, para assistir ao lançamento do filme ‘A Casa Elétrica’, com direção de Gustavo Fogaça. O longa, com produção da Panda Filmes, retrata o pioneirismo do selo gaúcho de gravação e sua conexão entre as cidades de Porto Alegre e Buenos Aires. “Foi um misto de sentimentos. Orgulho da história daquele lugar e a dimensão da ignorância que eu tinha de um imóvel que estava tão próximo de mim”, relata Ricardo Eckert.

Uma história judicializada

O futuro da Casa Elétrica é incerto. Uma ação pública ajuizada pelo Ministério Público tramita na justiça desde 2011 e pede aos proprietários, possuidores (quem locou o imóvel à época) e ao Município medidas emergenciais para restaurar o imóvel, que é tombado desde 1996.

Nada foi feito e todas as partes foram condenadas. A Procuradoria-Geral do Município (PGM) recorreu com Recurso Extraordinário (RE) – que compete a decisão da ação ao Supremo Tribunal Federal – que não foi admitido. Em resposta, a PGM recorreu mais uma vez, agora com um agravo à decisão que não deu seguimento ao RE. Até a publicação desta matéria, a ação ainda não tinha sido julgada. O Município alega que cabe aos proprietários e possuidores as medidas exigidas. Em 2015, as medidas emergenciais de restauro do imóvel foram orçadas em R$1,3 milhão. Hoje, pela deterioração do imóvel no decorrer dos anos, esse valor seria maior.

Em março deste ano, uma reunião entre a secretaria municipal de Cultura, a Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC) e os Amigos da Casa Elétrica, grupo do qual Ricardo Eckert integra, tratou do futuro do imóvel. O secretário Henry Ventura – que inclusive tem formação em Música – mostrou interesse pela preservação do imóvel. Recebeu Amigos da Casa Elétrica como sugestão a desapropriação do terreno inteiro e restauração da casa para atender demandas da região, como a de vagas de creche.

A reportagem tenta contato com os atuais proprietários do imóvel. O espaço segue aberto. 

Em memória da Casa

O valor histórico da casa foi reconhecido após um extenso abaixo-assinado organizado pela classe artística de Porto Alegre em 1996. Em 27 de dezembro daquele mesmo ano, a Casa Elétrica virava um bem tombado do município.

Quem tomou a frente do movimento foi o músico Hardy Vedana, que posteriormente publicou a obra “A Eléctrica e Os Discos Gaúchos” (2006). Seu acervo de discos produzidos na Casa foi doado ao Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, sob gestão da Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul.

Em 2015, o grupo Amigos da Casa Eléctrica organizou um 'Abraço' em defesa da restauração do prédio. A ação contou com dezenas de pessoas. No Facebook, uma comunidade aberta com 4,1 mil membros reúne publicações que remontam à história da casa centenária. 

Foto: Facebook / Amigos da Casa Elétrica / Divulgação 

Arquiteto defende viabilidade da restauração 

Um projeto pensado dentro da Prefeitura de Porto Alegre, na gestão de José Fortunati, desenhou um possível futuro da Casa Eléctrica. A ideia era restaurar o imóvel e transformá-lo numa espécie de gravadora/discoteca. Os primeiros materiais a constituir o acervo viriam de uma doação da família de Hardy Vedana ao município. Um conjunto riquíssimo de discos, partituras, equipamentos e publicações. 

O projeto seria simples de executar, conta o arquiteto Luiz Custódio, que integrou a Coordenação de Memória na gestão municipal. “O imóvel possui quatro pedaços, o ideal para criar um espaço para memória, outro para gravação, copa e banheiro.” O profissional defende que mesmo com o comprometimento da materialidade, a restauração da imagem da estrutura é viável. 

Os técnicos da prefeitura foram a campo para mapear e apresentar o projeto. Mas a ideia não foi adiante. “Nós fizemos tudo que podia ser feito”, lamenta Custódio. 

O acervo de Vedana migrou algumas vezes de espaço em Porto Alegre, terminando, como já foi dito nesta matéria, no Museu de Comunicação Hipólito José da Costa. 

Porto Alegre no mapa da indústria fonográfica

Há mais de um século, uma importante inauguração colocou Porto Alegre no mapa da indústria fonográfica mundial. Inaugurada no dia 1º de agosto de 1914, a Casa Elétrica foi a segunda fábrica de discos da América Latina e quarta do mundo. O endereço era na rua Sergipe, no então Arrabalde de Theresópolis, atualmente bairro Glória. No local, eram produzidos os gramophones “Elétrica” e discos de 78 rotações, feitos em goma laca.

O homem por trás da ousada empreitada era o italiano Savério Leonetti. O comerciante possuía uma loja na Rua da Praia chamada “A Elétrica”, que vendia máquinas de escrever, duplicadores, brinquedos e itens de bazar. Ali passaram a ser vendidos também os gramophones e gravações produzidos na rua Sergipe.

Foto: CP Memória

A inauguração foi um evento de grande impacto na cidade, com a presença de autoridades. O cônsul da Itália, Giovanni Beverini, esteve entre os 300 convidados. A cerimônia contou com apresentação de um quinteto de músicos da Brigada Militar - apresentação que foi gravada e lançada no mercado na semana seguinte.

A captação de som para as gravações era feita de forma mecânica, por meio de um aparelho em formato cônico, semelhante à peça principal de um gramofone, que cumpre função semelhante à de um microfone. Os discos eram prensados de um lado só, com apenas uma faixa, e eram lançados com o selo “Discos Gaúcho”.

Naquela casa, que hoje cai aos pedaços, foram gravados alguns importantes lançamentos. O primeiro tango prensado na América Latina, El Chamuyo, é talvez o mais conhecido e aclamado deles. Lançada em 1915, a canção era interpretada pelo argentino Francisco Canaro.

Outra obra de destaque foi “Yá Yá me Diga”, um samba carnavalesco lançado em 1915, de autoria do pernambucano Raul Moraes e gravado por Geraldo Magalhães. Dois anos depois, a Casa Edison lançou “Pelo Telefone”, de Donga, tido por muitos, ainda hoje, como o primeiro samba gravado no Brasil.

A história da Casa Elétrica e de sua produção fonográfica foi alvo de pesquisas aprofundadas do folclorista Paixão Côrtes e do maestro Hardy Vedana. Ambos se dedicaram a catalogar o maior número possível de lançamentos dos selos da Elétrica.

É difícil remontar todos os pedaços da história da casa. Parte da documentação da fábrica se perdeu após a falência e os registros dos próprios discos são confusos. Há numeração descontinuada, gravações repetidas e lançadas por selos diferentes, além de algumas autorias incertas.

Sua relevância não se restringiu aos limites do Estado, se espalhando pelo Cone Sul. Na Argentina, já havia um mercado consumidor de discos, mas sem produção nacional. As matrizes das gravações eram enviadas à Alemanha para serem prensadas em milhares de discos. A Casa Elétrica passou a prensar parte das gravações argentinas, lançadas Artigas, Tele-phone, Atlanta e Era, criados para a exportação ao país vizinho.

Com pouco menos de dez anos de atividades, a Casa Elétrica decretou falência em 1923. Savério Leonetti foi se estabelecer em Buenos Aires e, mais tarde, retornou para o Brasil. Morreu aos 77 anos, em junho de 1952, em Niterói (SP).

Veja imagens de como está o imóvel hoje


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895