Humaitá: como as enchentes moldaram a região projetada como vila industrial
Ideias da iniciativa privada para a região incluíam conceito de “cidade jardim” e projeto inspirado em Brasília
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Construído na década de 80, o bairro Humaitá tem sua história remontada a partir dos anos 30, atravessada por diversos projetos frustrados de tornar a região suburbana e alagadiça da Várzea do Gravataí em vila industrial.
Uma delas era a de “cidade jardim”, conceito de planejar a cidade em escala menor, em setores, para acomodar habitações, indústrias e agricultura, circundadas por uma cinturão verde. Em um contexto de êxodo rural, o modelo pretendia oferecer um meio-termo entre cidade e campo. Nesta época não havia Plano Diretor ou outras políticas de planejamento do território municipal.
A região de 700 hectares foi comprada nos anos 20 por um grupo de empresários, encabeçado por Frederico Mentz, um dos grandes nomes do período de implementação da indústria no Rio Grande do Sul. A ideia era simples: adquirir as chácaras para para um projeto de expansão da zona industrial porto-alegrense. A boa localização, perto do rio e da linha férrea, para escoamento da carga, e próximo do centro da cidade, eram vantagens que compensavam as condições do solo, que era muito alagadiço.
“Eles queriam ter uma zona industrial, baseado no conceito inglês, onde se teria a posse da região e implementar novas fábricas. Também teria a propriedade das casas, dos terrenos, para fazer as vilas operárias”, explica o arquiteto Kauã Domingues. Na prática, os operários das fábricas ali instaladas morariam nas habitações construídas pelo patrão e gozariam das estruturas próximas ao emprego.
Para criar condições habitáveis e seguras e evitar grandes alagamentos na região, o projeto previa investimento em saneamento e aterros para elevar a área.
Em 1934, a iniciativa privada encomendou o projeto ao engenheiro Luiz Arthur Ubatuba de Faria. Com o trabalho em mãos, um ano depois, os empresários-proprietários iniciaram uma mobilização para apresentar a proposta ao poder público – o prefeito Alberto Bins à época – e entidades da cidade. O projeto chega a fazer parte de uma exposição no Rio de Janeiro, lembra Domingues. “Eles buscavam uma espécie de ‘parceria público-privada da época’”.
A conferência também repercutiu nas páginas do Correio do Povo de 2 de fevereiro de 1937.
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Com algumas revisões e a aprovação, as obras se iniciam entre 1938 e 39. Mas em abril 1941, por conta da Grande Enchente, que durou 24 dias, elas foram interrompidas e dadas por perdidas. A região ficou completamente debaixo d’água e todo o avanço feito em canalizações e preparação do solo foram perdidas, assim como maquinários e outros materiais. Sem contrapartida da Prefeitura, os empresários amargaram o prejuízo da obra.
Antes de pensar em qualquer retomada, os acionistas tiveram que revisar novamente o projeto. Para a instalação de diques para isolar o rio da cidade em uma eventual nova enchente – que acabou ocorrendo em maio de 2024, mesmo com as estruturas – a Prefeitura desapropriou uma parcela das terras do projeto, próximas ao rio. Com a área que sobrava, o planejamento de “cidade jardim” do Ubatuba de Faria já não era mais viável.
A Brasília de Porto Alegre
Cerca de uma década depois, o sonho da cidade operária volta a ser discutido. Um concurso público regional foi criado, nos anos 50, para eleger um projeto de urbanização do Delta do Jacuí, que abrangesse a região das Ilhas e Eldorado do Sul. O projeto vencedor, no entanto, também não vinga. No entanto, a partir dele, surgem propostas aplicáveis à região da Várzea do Jacuí.
Em 61, na gestão do governador Brizola, é criada a Cidade Industrial de Porto Alegre. A área seguia sendo do Mentz, já com algumas fábricas instaladas entre Navegantes e Humaitá.
Esse projeto foi totalmente influenciado pelas ideias e urbanismo de Brasília, baseado na Carta de Atenas, conceito de urbanismo moderno. “Deixa de lado aquela história de ‘cidade jardim’, baseada na Inglaterra do século XIX, com proximidade com o campo, e passa a ter uma vertente urbanística moderna, com super quadras, setores mais claros, grandes vias”, explica o arquiteto Kauã Domingues.
O projeto não foi levado adiante por conta do golpe de Estado, naquele mesmo ano.
O desenvolvimento em cima da água
Em 17 de novembro de 1988, o bairro Humaitá foi oficialmente criado. Originalmente zona de aterro sanitário, a região se caracterizou por ser essencialmente residencial. Da área de 417 hectares, 18 hectares pertencem ao Parque Marechal Mascarenhas de Moraes, inaugurado em 2 de julho de 1982, com espaços de lazer e recreação, e de preservação permanente. Em 2019, o parque foi adotado por uma construtora.
“Aquele prédio em que eu moro foi construído em cima da lagoa em que eu pescava”, lembra Paulo Fernando Salvi, 56 anos, proprietário de estabelecimento no bairro. Ele chegou no bairro aos 26 anos e ficou deslumbrado com o que encontrou, sobretudo o senso de comunidade. Das mudanças que acompanhou desde então elenca a construção do estádio Arena como a mais impactante. Para ele, a aproximação da torcida tricolor trouxe mais desenvolvimento ao bairro, assim como segurança e movimento ao comércio.
Em um salto de 60 anos, o bairro foi novamente afetado por uma grande enchente. No início de maio de 2024, a água cobriu as residências em até 5 metros de altura por longos dias. Os diques construídos na década de 40 não evitaram os estragos e o consequente abandono de moradores e empresários do chamado 4º Distrito – que além do Humaitá engloba os bairros Floresta, Navegantes, São Geraldo e Farrapos.
Em 2022, a prefeitura de Porto Alegre construiu um programa que pretendia “reposicionar o 4º Distrito no século XXI”, nas palavras que constam no Programa +4D de Regeneração Urbana do 4º Distrito de Porto Alegre. A ideia agora era diferente: voltada ao desenvolvimento totalmente urbano, com lugar para também estudar e ser referência no lazer e turismo, conservando a história dos bairros. O projeto tem regimes urbanísticos especiais, incentivos urbanísticos e tributários e outras flexibilizações urbanísticas.
“É uma série de projetos que empacam sempre no mesmo problema: ser uma área grande, como vai distribuir, e que sofria com problemas das inundações”, pontua o arquiteto Kauã Domingues. “Tem uma intenção para essa região que já dura 100 anos, que já passou por várias vertentes, e não tem uma resposta clara neste sentido”.
O diagnóstico do Programa de Regeneração Urbana do 4º Distrito, publicado pela Prefeitura em maio de 2022, trouxe algumas opiniões de moradores do Humaitá-Navegantes recolhidas em um levantamento domiciliar.
“Foi destacado nas rodas de conversa que o aumento da ocupação na região está ocorrendo sem a instalação de infraestrutura adequada, especialmente com relação à água, esgoto e luz. Alguns participantes argumentaram que a Prefeitura tem conhecimento desses problemas, mas que suas ações não convergem com os interesses das comunidades afetadas pelos alagamentos”, consta no documento. Sobre a escolha de ocupar o bairro, os relatos estão relacionados a melhores condições de vida: “a maior parte dos novos moradores são provenientes do interior do Estado e se alocam na região que é mais próxima ao centro dacidade”.
Leia o documento completo neste link.
Esses foram os principais que fizeram Sonia Calazans sair de São Paulo com a família pra morar no bairro Humaitá, em Porto Alegre, em 1996. “Acessível, perto do Centro, que tinha lotação, um luxo da época, ônibus, e 20 minutos até o Centro”, elenca.
Hoje o bairro tá muito diferente daquele que ela e o filho guardam com carinho na lembrança. “Foram várias etapas de desconstrução. Tem uma questão de violência que foi vindo para o bairro ao longo do ano, com o acesso das vilas, uma falta de políticas públicas. Antes disso, havia uma promessa de que a rodoviária viria pra cá. Então houve um grande incentivo de vereadores locais e associação como se esse fosse um ponto que daria uma estrutura muito melhor para o bairro. O mesmo ocorreu com a chegada da Arena, que fizeram construção de prédio, mas nunca venderam uma unidade. Então isso não ajudou a estrutura do bairro, não deu uma força.”
Para eles, a enchente é o reflexo final de que o bairro não é assistido pelo Estado. “Com o tempo, outras coisas foram diminuindo: horário de ônibus, horário de lotação, aumento da violência, acesso ao bairro muito sujo”, conta. “A praça que antes acolhia, vira ponto de drogas depois”.