Ataques buscam afastar a mulher da política, diz especialista

Ataques buscam afastar a mulher da política, diz especialista

No dia da mulher, o Correio do Povo entrevistou Yasmin Curzi, professora da FGV, sobre alguns dos motivos que resultam na baixa representação feminina nos espaços de poder

Flávia Simões

Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, a Câmara dos Deputados promoveu uma sessão especial que contou com a presença da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco. Atualmente, as mulheres são 17,7% da Casa.

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As eleições municipais de 2024 devem suscitar uma discussão não tão nova, mas ainda necessária: a baixa representatividade feminina nos espaços de poder. No Rio Grande do Sul, menos de 8% dos municípios são comandados por mulheres; já nas câmaras municipais, do universo de 4.832 vereadores gaúchos, as mulheres são 939, não alcançando nem 20% do total.

Diante desse cenário, pesquisadores analisam alguns dos motivos que afastam as mulheres da política, como a violência política de gênero, que, como alerta Yasmin Cruzi, professora da FGV Direito Rio e especialista em gênero e democracia digital, tem se tornado ainda mais latente nas redes sociais.

A pesquisadora, que conduz um projeto sobre Digital Safety, coordenou a elaboração de um livro para tratar da violência política de gênero e raça nas redes sociais. A publicação aborda, de forma prática, os principais conceitos, leis e casos sobre a temática, além de elencar as principais táticas de ataque, roubo de imagem e desinformação que tem, como principal alvo, mulheres e pessoas negras na política.

Sobre a pesquisa, ela destaca que a coleta de dados nas redes sociais tem mostrado a diferença entre violência sofrida pelas mulheres e homens. “Quando eles são atacados na internet, são questionados pela sua opinião, pela sua atuação ou corrupção. Agora, para mulheres, esses ataques vêm com a narrativa de que ela não deveria estar ali, ou porque são despreparadas, ou porque são malucas”. Inclusive, ressalta que o “maluca” é uma resposta ao fato de que essa mulher “está saindo do estereótipo de gênero, no sentido de que ela deveria ser mais contida”.

Além disso, com o crescimento das redes sociais, a pesquisadora aponta a urgência de as plataformas digitais serem atuante no enfrentamento a esse tipo de violência. “Muitas vezes as mulheres fazem denúncias e não tem retorno nenhum do que aconteceu com a denúncia ou não. Muitas vezes elas próprias são alvo de conteúdo denunciado, é reportado para a plataforma e não recebem resposta sobre isso. Falta um canal de apelação também dentro das plataformas”.

A seguir, alguns dos principais trechos da entrevista de Yasmin ao Correio do Povo.

Yasmin Curzi, professora da FGV Direito Rio e especialista em segurança digital e violência de gênero | Foto: Divulgação / FGV / CP

CP: Existem razões para que tenhamos uma lei específica para a violência política de gênero. Você pode explicar, então, qual a diferença entre uma violência sofrida por um homem e a violência sofrida por uma mulher na política?

A gente fez coleta de dados das redes sociais tanto de candidatas mulheres, quanto de pessoas LGBTQIA+ e de homens, para ter uma amostra de comparação. Nessa comparação, o que fica muito evidente é que os homens, quando eles são atacados na internet, eles são questionados pela sua opinião, pela sua atuação. Muitas vezes, a violência que eles vão sofrer vão ser ataques (ligados) à corrupção. Quando são ativistas de direitos humanos, eles podem vir a sofrer violências e ameaças, mas não apelando para sua característica de identidade, a não ser que eles tenham um marcador específico, por exemplo, se são homens gays ou bissexuais ou se são homens idosos. No geral, homens são criticados e atacados em grande escala pelas suas opiniões e seus posicionamentos, não é um apelo à sua identidade.

Agora, para mulheres, esses ataques vêm com a narrativa de que essa mulher não deveria estar ali, ou porque são despreparadas, ou porque são malucas. E esse “maluca” vem justamente de um olhar para mulher de que ela está saindo do estereótipo de gênero, no sentido de que ela deveria ser mais contida. É sempre a ideia de que elas estão exagerando se elas estão falando mais alto, se estão sendo assertivas, elas são malucas, doidas. Se a mulher está na política, ela deve estar na política como uma figura que possa espelhar esse padrão de parâmetro do que deve ser a mulher na sociedade, que deve ser uma mulher casada, uma mulher que tem um porte mais dócil, que seja afável, que possa, nela, ter um papel de cuidadora. Isso também é bastante invocado pelas pelos setores mais conservadores.

Então esses estereótipos de gênero que são acionados contra mulheres que fogem desse padrão são obviamente misoginia em geral. São ali uma tentativa de falar: “você não pode estar aqui nesse lugar porque você está fugindo do padrão, portanto, você não é bem-vinda aqui e você vai ser hostilizada até você pare de ser assim”. É o que eu chamo de regulação de gênero, são formas de regular como um gênero deve se comportar publicamente.

CP: Quando olhamos para o ambiente online, geralmente observamos ataques mais direcionados a mulheres e pessoas com maior visibilidade. Você acha que, nestas eleições, a violência política de gênero deve atingir na mesma proporção políticas mulheres com menor ou maior visibilidade?

Com certeza vai atingir em graus substantivos as pessoas que não têm tanta visibilidade política. No livro listamos uma série de dados e pesquisas que mostram como mulheres, pessoas negras e LGBTQIA+ que tentam desafiar o status quo é quando elas estão presentes nesses espaços, localizando ali demandas específicas e com isso fugindo ao estereótipo que molda o cimento do nosso tecido social de que essas pessoas não deveriam estar ocupando esses espaços. De fato é um cenário que eu vejo se reproduzindo contra candidatas de menor destaque, obviamente em termos de escala, para quem é mais visível e já é alvo desses grupos há anos, vão continuar sendo os principais alvos. Mas é um cenário que, infelizmente, acaba se perpetuando contra mulheres, pessoas LGBTQIA+ e candidatos negros em qualquer municipalidade. Desde que passe a desafiar status quo, pode vir a ser alvo.

Eu acho que esse espaço (político) continua sendo muito hostil às mulheres. Tanto no sentido de olhar para elas como de forma objetificá-las. Isso aumenta também a possibilidade de violência, porque se tem a compreensão de que elas não deveriam estar se posicionando sobre determinados temas, não deveriam estar sendo vocais sobre determinados temas, não deveriam estar na política de forma geral. Muitas vezes os comentários são que ‘ela deveria estar lavando louça, deveria a estar em casa’.

CP: A violência política de gênero não tem partido, mas dados mostram que ela ocorre com maior incidência em mulheres de esquerda. Quando estamos falando disso em um ambiente online, as regras também são as mesmas?

O espectro político não é, de fato, uma questão. Mas quando estamos falando violência política de gênero a gente tem que considerar também o volume de ataques e o volume de críticas que mulheres nesses espaços sofrem. Por exemplo, a Tabata Amaral é uma candidata mais ao centro e às vezes tem um posicionamento que agrada mais à esquerda, outras vezes com posicionamentos que vai agradar mais à direita. Ela vai sofrer ataques dos dois lados, porque agiu de determinada forma, e vai ser mais cobrada dos dois lados.

Em questão de volume não há comparação com homens na mesma posição. Homens, em geral, não são tão criticados, não são tão cobrados publicamente quanto mulheres que estão em público. Então independentemente do espectro político, a gente vai ter expectativas de gênero sendo colocadas e a cobrança maior para mulheres, porque se você é uma mulher e está nessa posição de destaque, está na política, você vai ser mais olhada. As pessoas vão esperar mais de você, porque, bem ou mal “você não deveria estar ali” e, se você está, então você está ali para aguentar qualquer coisa e deveria estar dando o dobro, fazendo o dobro, fazendo mais e melhor, isso em ambos os espectros políticos, tanto à esquerda quanto à direita.

CP: Nós temos então um diagnóstico: as mulheres são as principais vítimas desse discurso de ódio online também. O que podemos fazer agora, na prática, para mudar esse cenário?

Eu acho que antes de mais nada, a lei de violência política de gênero precisa ser reformada em algum sentido. O primeiro deles é abrangendo também gênero de uma forma mais geral, tendo em vista que o debate sobre se as mulheres transsexuais vão ser abarcadas ou não pela legislação sempre vai cair para o judiciário decidir, e a gente sabe que o judiciário, às vezes, atua de forma completamente desarmônica. Então a lei deveria ser melhorada nesse sentido para garantir uma proteção mais integral. Além disso, para garantir a proteção não só no durante o período eleitoral, mas durante todo o seu mandato e sua vida política. Não deveria ter uma limitação.

Segundo, é uma cobrança diretamente às plataformas de redes sociais e de mensagens privadas. Muitas vezes as mulheres fazem denúncias e não tem retorno nenhum do que aconteceu com a denúncia ou não. Muitas vezes elas próprias são alvo de conteúdo denunciado, é reportado para a plataforma e não recebem resposta sobre isso. Falta um canal de apelação também dentro das plataformas. No livro a gente traz uma série de recomendações também para esse setor. Então, primeiro eu acho que as plataformas deveriam estar assumindo compromissos mais significativos com o combate à violência política de gênero no Brasil, mas isso envolve criar esses canais de apelação e melhorar o seu sistema de moderação de conteúdo de uma forma fundamental e a gente não vê isso acontecendo. A gente tem visto cada vez mais eles (plataformas) relegando a inteligência artificial, a detecção automática de conteúdo que viola a política de comunidade deles.

CP: E qual o papel do poder público nesse combate?

A gente precisa de mais investimento do poder público na potencial criação de delegacias específicas para isso ou de setores específicos dentro da Polícia Federal e do setor de crimes cibernéticos. A misoginia online é passível de investigação da polícia federal por causa da Lei Lola. A gente poderia ter um setor específico para olhar para a violência política de gênero e produzir investigações de forma mais incisiva. Conversando com advogadas da Abradep me foi informado que muitas vezes os próprios procuradores eleitorais não têm informação sobre a legislação de violência de gênero, sobre violência política contra mulher. Então não é esperado que policiais também possam saber se não tem formação sequer para o MP. Cursos de formação e capacitação deveriam ser mandatórios.

Por exemplo, o TSE teve parceria com as plataformas para desenvolver treinamento para os servidores no combate à desinformação e memorandos foram assinados entre plataformas e o TSE com esse compromisso de capacitação. Poderia ser feito algo nesse sentido, de uma forma mais abrangente com servidores, promotores e procuradores para capacitação sobre violência política de gênero. Muitas vezes (as candidatas) não sabem sobre os seus direitos dentro dos partidos e muitas vezes são vulnerabilizadas pelos próprios. Eu acho que para elas entenderem o que é violência online, esse tipo de campanha pública também seria interessante.

Mas é (preciso) uma conscientização geral de que determinadas condutas são crime. Durante muito tempo, violência doméstica foi naturalizada na sociedade e ela é naturalizada até hoje em alguns segmentos da população. A gente precisa de campanhas para fazer com que essas violências sejam desnaturalizadas. Foi por causa da Maria da Penha, que foi até a corte interamericana de direitos humanos com o caso dela, que hoje temos a lei. E, ainda assim, as mulheres são desincentivadas a fazerem denúncias, enfrentam milhões de obstáculos nas polícias e no judiciário quando vão levar os seus casos. A gente tem uma estrutura punitiva do Estado que é bastante reticente a compreensão de violência de gênero enquanto violência de fato.

E quando a gente vai para o ambiente online isso se agrava ainda mais, porque vão olhar para a internet como se fosse um espaço que você pode simplesmente desligar que não tem relação com a tua vida no cotidiano, que não é uma ameaça real. E não é assim, a gente tem evidências de que stalking são um indício fortíssimo de que um feminicídio pode ocorrer. E a violência online afeta a liberdade de expressão das candidatas, por que a candidata vai se expor publicamente se tem uma campanha de desinformação contra ela?

CP: Como você relaciona a violência política de gênero a baixa representatividade feminina na política?

É um problema que vai levando ao outro, um ciclo vicioso. A falta de mulheres na política faz com que leis ruins continuem sendo produzidas ou que não haja investimento significativos para o combate a esse tipo de violência. A gente precisa de legislações boas que fomentem desde o início da vida de uma pessoa a possibilidade dela estar nessas instituições. Se você não tem uma representação, fecha o horizonte. A gente fecha a capacidade de imaginação de crianças e adolescentes para executar essas funções. A PEC 9/2023 (proposta que prevê anistia aos partidos políticos por não cumprirem a cota de gênero), é um exemplo. Ela foi elaborada por homens para fazer com que os seus partidos não cumpram o que manda legislação. E que mulher que vai querer se candidatar nesse cenário de desigualdade de distribuição de recursos? As esperanças vêm a partir dos exemplos.

Então eu diria que o problema da representação vai disso, mas ele não existe só nas instituições públicas, existe também nas plataformas. A maioria das pessoas que estão desenvolvendo as políticas públicas das plataformas são homens do Norte Global, dos Estados Unidos, que não tem dimensão do contexto local nem tem interesse de produzir boas políticas de combate à violência política de gênero ou a violência de gênero de forma geral.

CP: Então é correto afirmar que além do poder público, setores privados – como as plataformas digitais – também têm o seu papel dentro desta que deve ser uma constante luta. Diante disso, é preciso discutir a regulamentação das redes sociais? E, consequentemente, o PL das Fake News?

O direito de devido processo é um dos principais direitos presentes no PL 2630. Lógico que ele não é perfeito e tem muitas coisas problemáticas. A última versão que eu tive acesso era a de abril de 2023 e ainda tinha alguns defeitos muito significativos, a questão da imunidade parlamentar por exemplo e também uma falta de clareza sobre alguns termos. Tem muitas questões que ainda precisam ser aprimoradas antes de ser aprovado, mas de qualquer forma é um instrumento fundamental para que a gente possa trazer uma forma de accountability para as plataformas, uma forma de fazer com que elas respeitem o direito das pessoas de terem acesso à informações sobre como a sua comunicação tem sido prestada, é até mesmo uma questão de direito do consumidor.

A gente sabe que os mecanismos de moderação de conteúdo (nas redes) não funcionam de forma adequada ou 100% precisa, já tem dados evidenciando isso e não é só em português, mas em diversas línguas que não são inglês. A gente tem um problema grave para a liberdade de expressão e a necessidade de que canais possam dar conta de aprimorar esse serviço. São direitos fundamentais que estão sendo restringidos por atores privados de forma arbitrária. Isso não pode acontecer.

Então o PL 2630 vinha trazendo essas regras para trazer mais transparência, trazer direitos para os usuários nesse quesito, sem eles a gente fica um pouco a mercê de decisões judiciais, e ai pessoa precisa ter dinheiro para acionar o judiciário e para reclamar que a plataforma removeu o conteúdo dela de forma arbitrária e que não está respondendo adequadamente uma solicitação. Não é um “não” a liberdade de expressão, é um “sim” para toda forma de liberdade de expressão, inclusive para políticos de direita ou personalidades da direita, por exemplo como Monark, que teve sua conta suspensa. Ele alega que foi de forma arbitrária, ele poderia (com o PL) ter ali um canal de apelação. Então serve para todo mundo porque vai ser um direito para todos os cidadãos.

Hoje em dia a gente está à mercê do voluntarismo das plataformas, tanto no debate contra desinformação quanto no combate ao discurso de ódio. Estamos à mercê da compreensão delas do que é discurso de ódio ou não, não do nosso ordenamento constitucional. O PL é uma tentativa de uma parametrização e de legitimidade democrática para a ação das plataformas. Esse é o conceito que é a principal: a legitimidade democrática dessas ações.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895