Projeto da Agergs deve ter alterações antes de ser devolvido à Assembleia
Tribunal de Contas e associação de servidores apontam problemas no texto, como perda de autonomia da agência e baixa atratividade da carreira; governador amplia negociações
publicidade
A reestruturação da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (Agergs), prometida pelo governador Eduardo Leite (PSDB) desde o ano passado, terá sua proposta modificada. Peça essencial da reforma administrativa encampada pelo governo do Estado durante o mês de julho, o projeto específico para a agência será o último a ser devolvido à Assembleia Legislativa.
Após reações negativas, o governador afirmou que dará tempo ao debate. Leite apresentou um novo projeto de lei complementar, dando sequência à reforma na administração direta. Já o texto específico da agência será alterado a partir de negociações com deputado e servidores que devem ocorrer nas próximas semanas, antes de ser apreciado no plenário 20 de Setembro.
Neste período, o governador e a equipe do Palácio Piratini terão a oportunidade de aperfeiçoar alguns aspectos do texto apontados como problemáticos por interessados na pauta, como uma possível perda de autonomia da agência, continuidade de baixa atratividade na carreira e não utilização de recursos disponíveis.
Independência da regulação de serviços delegados pode estar em cheque
Tanto a Associação de Servidores da Agergs (Assegergs) quanto o Tribunal de Contas do Estado apontam possível perda de autonomia pela agência. De acordo com análises, o texto daria maior poder à Procuradoria-Geral do Estado (PGE) e à pasta do governo ao qual a Agergs está vinculada: a Secretaria da Reconstrução (antiga Secretaria de Parcerias e Concessões).
“Existe possibilidade de intervenções acima do desejado pela PGE e pela secretaria. Segundo o projeto, esses órgãos teriam algumas competências que poderiam colidir com a autonomia da agência”, afirmou o diretor de Controle e Fiscalização do TCE, Roberto Tadeu de Souza Júnior, deixando claro que expressou sua opinião e que o tribunal não fez análise detalhada do texto.
“A dependência técnica da agência a fragiliza. Alguns comandos parecem permitir ações da PGE e da secretaria, ambos órgãos de governo, com potencial inclusive para colidir com disposições regulatórias dadas pela agência”, apontou.
O texto apresentado também preocupa a Assegergs. “Somos uma agência de Estado. Com o projeto, o princípio de autonomia, de certa forma, é maculado na medida em que o governo passa a ter um poder extremamente diferenciado. Cria-se desequilíbrio. Se permite uma situação de risco para os próprios investimentos. Qual empresário vai investir num projeto de concessão de 20, 30 anos sabendo que a cada quatro anos tem eleição e que as interpretações vão mudar ao sabor da ideologia política que domina o governo do estado”, questiona o presidente da associação, Luiz Klippert.
“Competências que são da Agergs, como a parte da regulação e da emissão de normas regulatórias, que se garanta a isonomia no processo regulatório, passam da Agergs para a PGE, que é um órgão do governo”, completa.
O governo gaúcho nega que a PGE ou secretarias terão ingerências na autarquia. Segundo o secretário-adjunto da Casa Civil, Gustavo Paim, o que é previsto no projeto são ritos comuns da administração pública. “O que acontece é que temos a PGE como órgão jurídico que responde pela administração direta e indireta do Estado. Então temos a PGE com os seus setoriais. A ideia é ter também na Agergs o setorial da PGE, que é quem responde juridicamente pelo Estado. É o papel normal da advocacia do Estado. Não há nenhuma ingerência, absolutamente nada disso”.
Segundo ele, a proposta do Executivo visa justamente reforçar o poder fiscalizatório da agência. “Vamos precisar conversar com os deputados e entender resistências que venham a existir. Quando falamos de Agergs, não estamos falando apenas em estrutura pública. Falamos de uma quantidade de serviço que foram concedidos, desestatizados. Precisamos, enquanto órgão público, fazer a fiscalização disso e a agência de regulação é fundamental para que possamos ter bons serviços prestados”, disse Paim.
Procurada, a direção da Agergs preferiu não se manifestar sobre a proposta de reformulação.
Relatório do TCE aponta fragilidade na fiscalização de contratos e carências de quadros técnicos
O Tribunal de Contas realizou um relatório de quase 200 páginas sobre a atuação da Agergs a partir do case do contrato da Concessão nº 20/2021 da rodovia RSC-287. Segundo o documento, embora a criação da Agergs tenha previsto um quadro de 100 servidores, a agência nunca contou com esse número. Em 2023, havia 72 servidores, com uma ocupação de 78% do cargo de técnico superior.
Além de autonomia técnica, a Agergs tem autonomia financeira a partir das taxas de fiscalização cobradas das empresas concessionárias de serviços gaúchos. Boa parte desses recursos, contudo, vão parar no caixa único do governo do Estado. Segundo os estudos, nos anos de 2021 e 2022, menos de 60% dos recursos foram utilizados. Isso ocorre porque os recursos são liberados conforme a previsão orçamentária da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).
Outro fator financeiro que pesa para a suposta ineficiência da agência é a remuneração dos servidores. Com uma carreira nada atrativa, a Agergs tem dificuldade de reter funcionários de qualidade e atrair bons profissionais.
“O teor do projeto aponta para desvalorização da carreira e não recomposição das perdas salariais. A última reposição que tivemos foi em 2006. São 18 anos sem aumento. A perda acumulada nesse período, considerando os índices oficiais de inflação, chega a 157%. nossa situação é dramática”, critica o presidente da Assegergs, Luiz Klippert.
Além da questão remuneratória, há acumulação de tarefas pelos funcionários. “Atualmente, a Agergs tem uma divisão de diretoria jurídica, diretoria de tarifas e diretoria de qualidade. Quem está na diretoria de tarifas tem que entender de todos os contratos, pois calcula e revisa tarifas de todos os segmentos. São contratos complexos: tem que entender de rodovia, energia, saneamento, aeroportos… tudo muito diferente”, aponta Marilucia de Ross Moser, que compôs a equipe que realizou o relatório de auditoria operacional.
O projeto do Executivo sana, em parte, esse problema ao modificar a disposição de diretorias da agência, criando as diretorias Administrativa e Financeira; de Transportes e Mobilidade; de Saneamento e Irrigação; de Energia, Gás e Iluminação Pública; de Regulação Econômica; de Tecnologia e Inovação; e de Assuntos Institucionais.
Porém, essa alteração só significará avanço com um quadro de funcionários composto por profissionais competentes. “Não adianta nada fazer toda essa construção se a melhora do plano de carreira não for suficiente para colocar pessoas de qualidade ali”, disse o diretor de Controle e Fiscalização do TCE, Roberto Tadeu de Souza Júnior.
Nesse sentido, os servidores da agência ficaram decepcionados com a proposta. “Quando tomamos conhecimento, ficamos extremamente surpresos e decepcionados. Não pedimos rejeição ou retirada do projeto. Queremos mudanças positivas e não uma desestruturação. Se ele adotar algumas medidas, o projeto passa de ameaça a solução, avalia o presidente da Assegergs.
“Se for como está, minha previsão é que num curto espaço de tempo a Agergs vai entrar em colapso total”, afirma Klippert, que representa os funcionários da agência.
Agência surgiu em 1997: desde então, desestatizações avançaram
A Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (Agergs) foi criada em 1997. Desde então, o Estado ampliou o rol de operações concedidas à iniciativa privada. Sua estrutura, contudo, permaneceu a mesma.
Apenas durante os governos Eduardo Leite (PSDB, 2019-atual), o Palácio Piratini desestatizou operações estaduais em energia, gás, infraestrutura, patrimônio e saneamento. Na gestão do tucano, o Estado vendeu a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), a Companhia de Gás do Estado do Rio Grande do Sul (Sulgás) e, mais recentemente, a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan).
Na infraestrutura, concedeu 271,5 quilômetros de rodovias estaduais integrantes do Bloco 3 do Programa de Parcerias do RS, além dos 204,5 quilômetros da RSC-287. Atualmente, o Piratini está atualizando os estudos para as concessões das rodovias do Blocos 1 (regiões Metropolitana, Litoral e Serra), que totalizam 444,74 km de extensão, e do Bloco 2 (Vale do Taquari e norte do Estado), que totalizam 414,91 km de extensão.
O último leilão realizado foi o que concedeu o Cais Mauá por 30 anos ao Consórcio Pulsa RS. O Executivo ainda planeja a concessão de aeroportos e tem estudos para conceder a Companhia Riograndense de Mineração (CRM) e a Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre S. A. (Trensurb), sendo esta uma empresa pública de controle da União.
Com suas atribuições aumentando e a estrutura não acompanhando essa evolução, a Agergs tem encontrado dificuldade em exercer plenamente suas funções. Em meados de agosto de 2023, a atuação da agência ganhou maior atenção e visibilidade com o crescente número de reclamações envolvendo a prestação de um dos serviços essenciais repassados à iniciativa privada no Estado, que foi a energia elétrica.
O caso acabou inclusive por envolver o governador Eduardo Leite, que mediou uma situação envolvendo falta de luz na região Sul do Estado. Ele então prometeu uma reformulação para a agência, sem detalhar a ideia.
Poucos meses depois, em janeiro deste ano, um temporal com fortes ventos deixou cerca de 1,3 milhão de gaúchos sem energia elétrica - alguns, por semanas. As principais áreas sem luz eram de responsabilidade da CEEE Equatorial e da RGE. A Agergs, responsável por fiscalizar essas concessionárias, foi mais uma vez alvo de críticas. Leite então foi à sede da agência e, mais uma vez, prometeu mudanças, com o compromisso de que um projeto seria protocolado ainda em 2024.
Agora, com a proposta divulgada e conhecida pela sociedade, o texto será novamente discutido com deputados, partes interessadas e pode sofrer alterações. O governador prevê que ele deve ser encaminhado novamente ao Parlamento “nas próximas semanas”.