Secretária-adjunta da recém-criada Secretaria Estadual da Mulher, Viviane Nery Viegas já viu muitos casos de violência doméstica em sua carreira enquanto delegada da Polícia Civil gaúcha. Acompanhou outros tantos enquanto estudante do assunto, em seus estudos de mestrado e doutorado. Ela recorda com clareza, por exemplo, quando teve de atender uma mãe que foi açoitada por correntes pelo companheiro enquanto amamentava e da mulher que teve o crânio afundado por uma marretada.
A depender do caso, ocorrências como essas são classificadas no registro oficial como feminicídios tentados. Até agosto deste ano, foram 119. Ou, ainda, como lesões corporais, que já são quase 12 mil em 2025.
Para evitar que situações como essas se repitam, Viviane trabalha no desenvolvimento de programas para prevenir esse tipo de ocorrência com o uso da Inteligência Artificial (IA).
“Hoje se entende que a gente pode usar a inteligência artificial para tentar predizer, ou seja, mais do que prevenir. É tentar enxergar uma potencial violência com fatores de risco que se apresentem”, explicou a secretária-adjunta, na sede provisória da secretaria, montada no Centro de Referência a Mulher (CRM) de Porto Alegre.
Os modelos já existem e são exitosos. É o caso do VioGén, na Espanha. O programa unifica dados de várias redes do estado, como segurança – no caso de ocorrências e medidas protetivas, por exemplo –, saúde e conselhos tutelares, e gera notificações que permitem o monitoramento de casos. Em Recife, um modelo parecido já é implementado, através da análise de palavras que podem ser buscadas pela IA, em diferentes meios, inclusive nas redes sociais, para gerar alertas. E em Brasília, a “Glória” é uma IA que faz análise preditiva de risco baseada no tom de voz e expressões das vítimas que fazem denúncias, ajustando-se à regionalidade.
Diante dos bons resultados, Viviane pretende articular medidas parecidas no Rio Grande do Sul, através do trabalho da Secretaria da Mulher. A pasta foi retomada após dez anos de sua extinção, em 2015 e, agora, será comandada pela ex-prefeita de Cristal, Fábia Richter (PSD). O departamento será estruturado em três eixos: enfrentamento à violência contra as mulheres, fortalecimento das redes de acolhimento e ampliação da autonomia financeira das mulheres em situação de vulnerabilidade.
De início, a prioridade é articular todos os programas que já existem mas estão sob a alçada de outras secretarias. É o caso do SERMulher, da Saúde, voltado ao atendimento médico; e EmFrente, Mulher, que trabalha a questão da conscientização. “A rede de atendimento e de proteção já existe, o que precisamos é rearticular”. Depois, a ideia é dar início aos novos projetos.
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Planos também incluem políticas para agressores
A secretaria também pretende articular políticas públicas para os agressores, assunto controverso para quem escuta de fora. A pauta foi defendida pela titular da pasta, Fábia Richter, e faz parte daquilo que Viviane Viegas explica como “prevenção secundária”. O objetivo não é retirar a responsabilização daquele que comete o crime, mas evitar que o homem, após passar pelo sistema de Justiça, volte a cometer os delitos e apenas “troque de vítima”.
Nesse sentido, uma das medidas que a secretária-adjunta estuda é a Linea Calma, de Bogotá, na Colômbia. O programa consiste em um canal de contato para homens ligarem quando sentirem sinais de que podem cometer violência. Como um CVV (Centro de Valorização da Vida) para saúde mental.
Outro exemplo de sucesso, que nasceu no Judiciário gaúcho, são os grupos reflexivos de gênero para homens com medidas protetivas ou obrigações judiciais. “É um programa muito exitoso e que a gente precisa fortalecer. Não só para quem já está no sistema de Justiça, mas também para aqueles que estão nas comunidades. O que eu quero dizer com isso, a grosso modo, é que a gente precisa saber falar sobre essa violência para homens e mulheres”, afirma Viviane Viegas.
Feminicídio deve ser pauta intersetorial
A dificuldade em classificar a violência de gênero é um dos problemas que dificulta a elaboração de medidas. Os dados indicam que há um percentual maior, entre 30% e 40%, de vítimas e agressores oriundos de classes com menor escolaridade e condições financeiras, mas os números não são explicativos por si só. “A violência doméstica está em todas as classes sociais, em pessoas com qualquer condição econômica”, lamentou Viviane Viegas.
Apesar disso, pesquisas apontam que a violência contra a mulher se concentra mais em áreas com maior criminalidade no geral, como Porto Alegre e Região Metropolitana. Essa análise permite que se pense em políticas públicas que trabalhem, de início, nessas localidades, a exemplo de programas educacionais em escolas da região.
Mas, na ausência de um perfil único, são necessárias ações diferentes que abranjam diferentes contextos. No meio rural, por exemplo, onde há maior dificuldade de acesso, Viviane acredita que estratégias que levem o poder público até essas vítimas podem funcionar, inclusive através de outras áreas, além da segurança, como a saúde.
Por isso, a urgência em tornar o feminicídio uma pauta intersetorial e que inclua toda a sociedade. “A comunidade tem que apoiar essas mulheres. Se as comunidades e os lugares onde essas mulheres estão inseridas apoiarem que elas denunciem, que elas tragam essas situações para a segurança pública, será muito mais fácil.”