Porto Alegre ainda não percebeu o tamanho do Fantaspoa
Festival de cinema dedicado ao gênero fantástico já teve 21 edições na Capital

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A edição de 2025 do Fantaspoa já acabou há mais de um mês, mas uma pulga insistiu em ficar atrás da minha orelha desde então. A ponto de eu achar que seria válido colocar isso em um texto, já que pelo menos o debate em torno do tema, acredito, possa ser útil.
A questão é aparentemente simples, mas quem chegar ao final destas linhas vai ver que é um pouco mais complexa do que parece. De modo sucinto, eu resumiria assim: Porto Alegre ainda não percebeu o tamanho e o potencial do Fantaspoa. Mas, como disse, não é tão simples assim.
Aos desavisados, o festival de cinema é dedicado ao gênero fantástico. Ainda é comum, mas cada vez menos, a confusão de achar que é um evento voltado apenas para filmes de terror. Eles estão lá, mas não sozinhos. Não por acaso, há poucos anos o vencedor foi "Max & Molly", uma comédia romântica futurista. A produção que encerrou o Fantaspoa este ano foi um documentário. Enfim, exemplos de que a coisa toda vai além do medo não faltam.
Primeira bolha foi furada nos anos 2010
O evento foi para a sua 21ª edição, mas todos os responsáveis concordam que foi a partir do boom das redes sociais, ali pela metade dos anos 2010, que o Fantaspoa furou a primeira bolha e chegou a um público mais amplo. Desde então, virou rotina todo ano algumas sessões lotarem mesmo antes do dia da exibição - e quem busca um ingresso para as sessões musicadas sabe bem disso.
A questão, e aí a coisa começa a ficar menos simples, é que o Fantaspoa é o que é não só pelos filmes. Mesmo quem der um jeito no calendário e conseguir assistir aos mais de 200 filmes em três semanas, ainda assim não vai entender exatamente o que é o festival.
Como acompanho o evento há alguns anos, já tinha uma impressão. Este ano, cobrindo mais de perto, no entanto, veio a convicção: para entender o Fantaspoa, é preciso abraçar o que o festival oferece. É preciso viver o Fantaspoa. E não sou o único a achar isso.
Festival é o único da América do Sul em lista da Moviemaker
A Movie Maker é uma revista/site de cinema das mais famosas e relevantes do mundo. De certa forma mais voltada aos cineastas do que ao público propriamente, todo ano ela divulga uma relação com os 50 festivais em todo o mundo que "valem a pena a inscrição". Há algum tempo, o Fantaspoa figura na relação, ano após ano. Aliás, é o único de toda a América do Sul.
"Distribuidores são raros, então você pode se concentrar mais em diversão, filmes e amizade do que negócios", diz um trecho do texto da Movie Maker. O que é o típico caso do copo com água pela metade. Resta saber se você vai ver o copo meio cheio ou meio vazio.
O copo meio vazio vai atentar para o fato de que a ausência de distribuidores significa menos relevância do ponto de vista da indústria. Poucos, para não dizer quase nenhum, filmes são vendidos durante o Fantaspoa. Isso é um fato e nem mesmo os organizadores contestam.
Menos indústria, mais camaradagem
O copo meio cheio vai atentar para o fato de que este não é o objetivo do festival. O que vale é a experiência. Mais do que dinheiro ou as exibições, o que fica para os diretores, elencos e outros profissionais convidados é a interação com o público. São as sessões comentadas, as oficinas e, por que não, as festas. Não por acaso, ano após ano, realizadores que participam do Fantaspoa pela primeira vez levam tatuado no corpo - literalmente - o logotipo do festival.
Não há uma linha separando artistas e espectadores e esse é o diferencial. Esse contato que dificilmente aparece tão solto em outros eventos no festival acontece a toda hora. A chance de acompanhar in loco a reação da plateia ao filme é algo que fascina - e tensiona - cada diretor. Em um festival com tamanha proximidade como o Fantaspoa, não só isso é possível, como as conversas logo em seguida indicam qual o grau de receptividade ao trabalho.
E talvez seja a partir daí que a coisa fica mais complexa. Quando eu falo que Porto Alegre ainda não percebeu a importância do festival, seguidamente uso os mesmos exemplos, talvez por serem os mais fáceis. Vou lembrar alguns.
Vencedor do Oscar passou por aqui
O vencedor do Oscar de melhor curta-metragem neste ano é um filme holandês chamado "I'm not a robot". Você pode procurar onde for - pelo menos por meios legais - e não vai achar para assistir. Fez parte da programação do Fantaspoa ano passado. Estava aqui. De graça. Para outro indicado ao prêmio na categoria curta de animação, "Wonder to Wonder", vale a mesma coisa.
O diretor Roger Corman, uma lenda do cinema, esteve no Fantaspoa de 2019. Atores da série Game of Thrones, em 2018. Em 2023, uma produção que ninguém dava nada por ela, chamada "Centenas de Castores", teve premiére latino-americana no festival. Quem lá esteve lembra da insanidade (no bom sentido) que foi a sessão. Qual não foi a surpresa em saber que o filme tornou-se um sucesso cult, incluído nas listas de melhores do ano. E estava aqui.
Demián Rugna, diretor de "O Mal que nos Habita", e Pedro Rivero, roteirista de "O Poço", ambos sucessos inesperados, são habitués do evento e não são pequenas as chances dos fãs dividirem uma mesa de bar com eles durante os dias do evento.
Potencial para novos públicos
É nessa interação entre artistas e público que reside o potencial ainda maior para o festival que aparentemente a cidade ainda não se atentou. O público “de sempre” já está garantido. Há espaço, no entanto, para quem ainda olha o evento como algo segmentado se surpreender. Mas, bem, eu avisei que a coisa não era simples.
Ao longo do Fantaspoa deste ano, observando aqui e ali, percebi que o festival não repete algumas práticas consagradas de outros eventos do mesmo tipo. Por isso, antes de escrever esse texto, liguei para o João Pedro Fleck, fundador e diretor geral. Combinamos uma entrevista, mas quem conhece o João já deve imaginar que não seria uma conversa, digamos, padrão.
Então lá fui eu a um estúdio para um bate-papo enquanto ele era tatuado. Foi uma conversa demorada, então vou resumir a duas questões. A primeira pode parecer boba, mas impacta diretamente no potencial do festival ser mais, na falta de uma palavra melhor, pop: a premiação.
Premiação discreta
Sim, talvez o grosso do público não saiba, mas o Fantaspoa tem uma mostra competitiva. Uma não, várias, divididas entre filmes nacionais, internacionais, íbero-americanos, de baixo custo… Mas parece ser algo menor, bem menor, dentro do todo.
Competição é algo que vende bem. Mesmo quem não acompanha os festivais, presta atenção para saber qual filme foi escolhido como o melhor, seja Toronto ou Veneza, Cannes ou Gramado. Portanto, dar mais peso à disputa, com uma cerimônia mais formal, mais palatável a eventuais transmissões, não seria uma ideia óbvia? “Não”.
Fleck tem dois pontos, um de ordem prática, outro uma opção de perfil. O prático é o fato de que o festival dura três semanas e muitos cineastas têm seus filmes apresentados logo nos primeiros dias. Portanto, financeiramente é inviável bancar a permanência destes por tanto tempo. Mas isso nem é o mais importante.
A questão principal é o perfil. “A gente quer que o nosso selo mais importante seja o de seleção. O cara tem que estar feliz por estar participando do Fantaspoa. Ganhar é um extra menor”, diz Fleck. Por trás disso, também está um cuidado para que um peso maior na concorrência não reflita em disputas entre os filmes, o que vai contra a imagem de boa convivência do festival.
“A gente indica o que gostaria de ver”
O outro ponto, bem mais subjetivo, são as escolhas artísticas da organização do evento - leia-se Fleck e os outros dois sócios, Nicolas Tonsho e João Pedro Teixeira - na hora da divulgação. Que são, vamos lá, bastante curiosas.
No episódio sobre o Fantaspoa do podcast CPop, do Correio do Povo, pedimos que o pessoal do festival fizesse uma lista com os 21 filmes imperdíveis desta edição. E, de fato, tinha muita coisa boa ali - inclusive o vencedor desta edição, “O Mosqueteiro Solitário”. Mas também tinha produções como “Sanduíche Quente”, filme que tem como premissa um personagem escondendo um saquinho de drogas em partes do corpo onde o sol não bate.
Pergunto a Fleck se isso não pode atrapalhar no sentido de se buscar mais respeitabilidade crítica. E a resposta é a cara da organização do festival: “A gente gosta de indicar os filmes que gostaríamos de ver”. E se alguém acha que os guris vão mudar de ideia, boa sorte.
Preservação da essência
Ou seja, do ponto de vista prático e talvez de mercado, há espaço para o Fantaspoa crescer e chegar a mais públicos. Também há um entendimento interno de que sim, no geral a cidade ainda não percebeu a dimensão do que acontece aqui nestas três semanas do ano.
Mas há também uma consciência muito enraizada de que o festival cogita o que for necessário, desde que não abra mão da sua essência. Há um cuidado muito grande para que essa característica de filmes & camaradagem não esteja em risco.
Se mais gente descobrir o Fantaspoa, ótimo. “Senão, tudo bem. Mesmo”, diz Fleck.