Até o início de 2023, quem passava pelo número 1061 da Rua Demétrio Ribeiro, no Centro Histórico de Porto Alegre, era agraciado pelo aroma de pratos de almoço, lanche e jantar. Aberto em 1988, o restaurante Bar Chopp Guaipeca, comandado por Rosalina Andara desde 1997, era um dos mais tradicionais restaurantes do bairro.
Ao longo de 30 anos, o negócio enfrentou crises financeiras, pandemia e uma quase venda. Porém, no dia 8 de fevereiro do ano passado, por volta das 19h, o último cliente era servido antes que o empreendimento fosse consumido por chamas originadas na cozinha.
“Em questão de meia hora, eu não tinha mais o que comer, eu tinha cinco funcionários para indenizar e um ex-marido sócio”, conta a proprietária. O incidente não destruiu somente o espaço, mas também a jornada de Rosalina à frente do negócio, que começou quando ela tinha apenas 23 anos de idade.
Encerrar as atividades em maio, três meses após o ocorrido, foi uma decisão que exigiu um grande esforço mental. Ela conta que estava tão focada em reabri-lo que chegou a deixar itens da cozinha em meio aos escombros para que pudessem ser recuperados.
“Eu precisava de 300 mil reais para reabrir o restaurante, até porque minha cozinha era toda sob medida. Não tinha como. Eu fui tentando e tentando, negociando com imobiliária. Nesse meio tempo, eles continuaram me cobrando o aluguel, as dívidas estavam correndo”, relata.
Vivendo um cenário de incertezas, Rose, como é conhecida por amigos e clientes, recorreu a um clássico da cozinha brasileira para recuperar a renda: brigadeiros. Ela produzia cerca de 350 doces por semana para pagar a equipe, aluguel do ponto e despesas pessoais.
Contudo, a culinária passou a ser insuficiente para sustentar o planejamento financeiro a longo prazo. Então, durante um jantar com familiares, veio a ideia de organizar um brechó solidário em frente ao antigo restaurante. Na primeira edição, as peças vendidas foram de roupas pessoais e doações espontâneas até itens resgatados do incêndio e consertados.
“Foi um sucesso. Várias pessoas me ajudaram. Minha irmã, amigas e ex-funcionários. As pessoas compravam e voltavam para casa para buscar alguma coisa para eu vender. Chegavam malas de roupas de doação. Nesse tempo, eu ainda estava resolvendo a documentação do seguro”, relembra.
Rose reflete que o último ano, entre perdas e partidas, foi um período guiado pelo desapego. “Eu tive que desapegar de bens, do meu negócio de 30 anos e de funcionários que eu gostava muito. Daí, pensei: ‘o brechó é um desapego’, e comecei a trabalhar com isso para convencer as pessoas que a gente não pode se apegar em nada. Num momento difícil, é importante desapegar das coisas para começar uma nova história”, reflete.
O suporte da comunidade foi tão grande que o que começou como uma solução emergencial se tornou uma aposta de novo negócio: em 8 de julho de 2023 foi inaugurado oficialmente o Brechó da Rose.
👩👩👧👧 Mulheres apoiam mulheres
Nos últimos anos, houve um crescimento expressivo na quantidade de empreendedoras no Brasil. De 2016 ao segundo semestre de 2022, o número de mulheres donas de negócio aumentou em 2 milhões, de acordo com o levantamento “Empreendedorismo Feminino no Brasil 2022", do Sebrae.
Mesmo representando 33% dos empreendedores do país, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) em 2023, as mulheres continuam enfrentando barreiras para impulsionar seus negócios.
Rose relata que enfrentou obstáculos burocráticos que a impediram de avançar negociações comerciais entre locação de pontos e planos de crédito, por exemplo. Apesar disso, a dona do brechó destaca o papel fundamental de outras mulheres em sua nova jornada empreendedora.
“As mulheres me dão força. Às vezes, elas vêm aqui para ver a minha história, como eu ‘renasci das cinzas’. Meus fornecedores são as mulheres, minhas amigas que divulgam e vão fazendo o ‘boca a boca’. Quando eu decidi fazer a inauguração, a presença feminina foi a principal parte para me dar apoio”, relata, emocionada.
Para ela, existe um mito sobre os potenciais de mulheres e homens na sociedade. “As mulheres não têm o apoio da sociedade, geralmente falam que os homens são capazes, são mais fortes, mas eu acho que não. Acho que as mulheres são incríveis, elas têm possibilidade infinita de fazer qualquer coisa.”
O suporte feminino se estende às clientes também. Rose relembra as vezes em que a clientela procurou a loja apenas para conversar, trocar abraços ou palavras de incentivo. “A minha relação com as clientes é ótima. A gente dança, dá risada juntas, toma café e come brigadeiros. É uma relação de amizade. Elas vêm aqui e falamos sobre família, relacionamentos, sobre moda, sobre tudo.”
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♻️ “O futuro vai ser brechó”
Em 2023 o Brasil registrou um total de 118.778 brechós em pleno funcionamento, segundo o Sebrae. A premissa desse modelo de negócio tem encantado empreendedores e público, que descobriram as vantagens das roupas de segunda mão no dia a dia e na vida.
Para Rose, o brechó que inaugurou no último ano significa uma chance de continuar impactando de maneira positiva os clientes, dessa vez pelo vestuário. “As roupas são escolhidas de forma que eu olhe pra elas e pense: ‘essa peça eu quero’. Quando ela vem para a loja, eu já falo que a peça é maravilhosa. Lavo, uso o melhor amaciante. São peças escolhidas com muito amor, porque são de pessoas conhecidas”, conta.
O garimpo cuidadoso e a curadoria dos itens são essenciais para a manutenção do negócio. Além disso, são ferramentas que Rose utiliza para quebrar o preconceito que ainda existe em relação a roupas usadas.
“Ainda existe preconceito com o brechó por causa dos brechós antigos. Na Europa, isso é tendência. Mas existe uma evolução nos brechós em Porto Alegre também. Já chegaram a me falar: ‘não sabia que tinha roupa tão bonita aqui na loja, tinha vergonha de entrar”, revela a empreendedora.
Tanto os brechós com CNPJ quanto os caseiros se mostram como princípio fundamental da chamada moda circular, que busca, principalmente, aumentar o ciclo de vida das roupas. Em um contexto onde a indústria da moda é a segunda mais poluidora do mundo, a proposta contribui para reduzir resíduos tóxicos no meio ambiente e incentivar o consumo consciente.
De acordo com projeções do Boston Consulting Group (BCG), o mercado de moda circular no Brasil pode atingir um crescimento anual de 15% a 20% até 2030.
Além disso, as buscas na internet por brechós têm crescido. Uma pesquisa da Semrush, plataforma de marketing digital, apontou que entre setembro de 2022 e setembro de 2023, a procura pelo termo “brechó perto de mim” registrou um crescimento de 175%, enquanto “brechó roupas usadas baratas” teve um aumento de 128.6%.
Ou seja, há um interesse significativo em abraçar propostas sustentáveis e conscientes de vestuário. Para Rose, esses conceitos, inclusive, são mais incentivados por um perfil em específico: os jovens.
A nível mundial, pesquisas confirmam o protagonismo da Geração Z nestes espaços. Segundo a McKinsey & Company, a Gen Z representa 40% dos consumidores globais de brechós e detém ainda um poder de compra de US$ 150 bilhões apenas nos Estados Unidos.
“A juventude é a maior clientela. Conheço meninas e mulheres jovens que não usam nada de loja, tem que ser de brechó, até o brinco. O futuro é a nossa juventude e esse público está trazendo pai, mãe, família e avós. O futuro vai ser brechó”, finaliza.
*Sob supervisão de Camila Souza
