No ano passado, o tema da festa de aniversário do meu afilhado foi “pirata”. Como dinda coruja que sou, tratei logo de providenciar um tapa-olho para entrar no clima – ainda que a mãe da criança alertasse que era apenas o tema, não o dress code. Usei mesmo assim, embora o tapa-olho tenha durado poucos minutos sobre o meu: Arthur logo o pegou para cobrir o seu. Ele queria muito ser pirata. E, para ser honesta, eu também.
Duvido que, na infância, você não tenha desejado ser pirata. Era uma das fantasias mais populares nos bailinhos de carnaval. Mas por que será que ele nos fascina, mesmo sendo um vilão? Eu tenho uma hipótese. A palavra “pirata” tem a mesma origem de “experiência”. Ambas derivam da antiga palavra grega “peirân”, que significa “tentar, arriscar-se, pôr à prova”. A “experiência” manteve seu significado até os nossos dias como “o ato de provar algo”, “tentar por meio da ação”.
O significado do “pirata”, entretanto, mudou. Originalmente, ele não tinha a conotação de criminoso: era o experimentador, o aventureiro do mar, que se lançava onde não havia leis e nem mapas. Carregava o impulso de explorar, arriscar-se, descobrir. Mas à medida que as sociedades mediterrâneas se organizaram em Estados com fronteiras, leis e instituições, o ato de “tentar fora do previsto” passou a ser uma ameaça à ordem. O “tentador” tornou-se “transgressor” – não por mudar sua natureza, mas porque o mundo se tornou menos livre.
Na infância, o que nos inspira no pirata não é a contravenção, mas a liberdade e a audácia. Desejamos ser piratas porque não temos medo do desconhecido. À medida em que crescemos, no entanto, vamos nos conformando às regras do mundo. Isso é essencial à vida em sociedade, mas talvez a gente passe do ponto e aniquile o pirata que há em nós – ainda que, lá no fundo, ele siga nos seduzindo.
Só voltamos a “piratear” na velhice. Pesquisas apontam que as pessoas se declaram mais livres aos 70 anos. Entre os motivos estão a menor ansiedade por status e comparação social, a escolha mais consciente das prioridades e o menor gasto de energia com expectativas externas, menos frustração por metas não alcançadas, a capacidade de filtrar o que importa e de se desligar do que não agrega, além da disposição para saborear as experiências mais simples.
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Mas os 70 anos, convenhamos, dificultam algumas experiências que exigem maior vigor físico (ainda que muitas pessoas nessa idade deixem jovens no chinelo). Um vigor que, apesar dos joelhos crepitando e da lombar que trava de vez em quando, nós ainda temos quando estamos na metade da vida. Então, o que estamos esperando para antecipar essa satisfação de viver, experienciando tudo o que nos é possível?
A metade da vida é um limiar em que podemos recolher o melhor da juventude e da velhice para inventar novas experiências, criando uma travessia na qual o mundo excessivamente regulamentado não nos roube o impulso de tentar. Navegar fora das rotas previsíveis, explorar mares internos e externos, desafiar os mapas que nos deram prontos, em atos de pirataria simbólica. A experiência – como o mar – é território de quem se arrisca.
Adriana Haas é jornalista e escritora. Especialista em Neurociência e em Psicologia Positiva, está concluindo a pós-graduação em Cuidado Integral de Mulheres Maduras. Pesquisa sobre a maturidade feminina há dez anos e tem dois livros sobre o tema.