Incertezas afligem produtores de uva

Incertezas afligem produtores de uva

Instabilidades climáticas trazidas pelo fenômeno El Niño podem afetar toda a safra da fruta no Rio Grande do Sul

Ao longo deste ano, o Fundovitis teve liberados R$ 7,6 milhões, montante que equivale a 4,9% do valor acumulado, e que é aplicado em parceria com o Consevitis

Por
Thaise Teixeira

A safra da uva da Serra Gaúcha, que responde por quase 90% da produção da fruta no Rio Grande do Sul, ainda é uma incógnita, tanto com relação à quantidade quanto à qualidade. A colheita das variedades precoces se inicia ainda em dezembro e segue em janeiro de 2024, mas as de ciclo médio e tardio, que respondem pela maioria, será em fevereiro e março. Até lá, o fenômeno El Niño ainda poderá modificar qualquer prognóstico realizado em 2023.

De qualquer forma, técnicos, líderes setoriais e produtores já trabalham com um nível de produção menor do que no ano passado, quando o Estado colheu 454,96 milhões de toneladas da fruta, conforme dados provenientes do Sistema de Declarações Vinícolas (Sisdevin) da Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação (Seapi).

O clima começou a interferir na safra de uva ainda no inverno. Segundo o engenheiro agrônomo Enio Todeschini, extensionista da Emater/RS-Ascar da regional de Caxias do Sul, o acúmulo de horas de frio no período foi “mais ou menos a metade da média histórica da região”. “Isso já trouxe problema na brotação das gemas, que foi muito baixa. Não teve frio suficiente para elas saírem do estágio de latência”, explica. Desta forma, algumas morreram. Outras até brotaram, mas não tiveram força para produzir.

Com o número de gemas aquém da média, o viticultor enfrentou a fase de brotação e florescimento das videiras abaixo de chuva. “Fechamos os meses de setembro, outubro e novembro com praticamente a média histórica anual de chuva para a região”, afirma Todeschini. Com impacto na fecundação e no “pegamento” das uvas, os cachos se formaram com um número de bagas menor do que a média, informa o extensionista.

O alto volume de chuva e a ocorrência de temperaturas elevadas abriram caminho aos fungos. Velhos conhecidos dos parreirais, os patógenos apareceram com força. Um deles foi o míldio, ou a conhecida mufa. A doença é causada pelo fungo Plasmopara vitícola. Sua atuação ocorre em todas as partes verdes da videira, culminando na destruição total ou parcial de folhas e frutos. “Tivemos muita chuva e poucos dias de sol nesses três últimos meses. A radiação solar direta ou insolação foi muito baixa, o que favoreceu a entrada de fitopatias”, destaca Todeschini.

Devido à invasão do fungo especialmente nas flores, sua identificação precoce foi dificultada. A constância dos dias chuvosos também impossibilitou a intensificação da aplicação de fungicidas, especialmente nas propriedades independentes, que não contam com assessoria técnica. “Na flor, é difícil identificar o fungo. O pessoal faz tratamento preventivo. O excesso de umidade foi determinante e, nos dias de chuva, não foi possível entrar nos parreirais para tratar as uvas com turbo pulverizador e o fungicida específico”, considera Todeschini.

Na Serra, onde estão 40 mil hectares dos 45 mil hectares de videiras do Estado, os primeiros sintomas aparecem nos parreirais por volta da segunda quinzena de outubro. No período inicial de surgimento, a doença é facilmente controlada com fungicidas, mesmo com excesso de umidade. O problema maior se dá quando ocorrem altas temperaturas e quando o patógeno se instala na época de floração. Se não controlado, ele acaba gerando a queda dos frutos ainda pequenos. “O produtor costuma fazer a aplicação, com ou sem chuva, quando começa a safra. Ele costuma fazer uma por semana até a época de Natal. Depois disso, entra com a calda bordalesa, aplicada a cada 15 ou 20 dias”, explica o pesquisador da Embrapa Uva e Vinho Lucas Garrido. A calda bordalesa é um fungicida que resulta da mistura de sulfato de cobre com cal virgem, diluída em água.

Este ano, para lutar contra os fungos, o produtor precisa contar com a ajuda dos meteorologistas. É de acordo com as previsões climáticas que ele antecipa ou adia as aplicações fitossanitárias, o que minimiza o impacto negativo das constantes precipitações. “O problema não é a questão se vai ou não chover. O produtor antecipa o manejo. Um dos grandes gargalos é que o pessoal dá muita importância aos produtos e pouca importância para o maquinário usado para a aplicação”, destaca o pesquisador.

A manutenção correta dos pulverizadores é outro complicador, em especial nas propriedades não vinculadas a vinícolas ou produtoras de vinhos artesanais. “Tem produtor que utiliza pulverizador por dez anos sem manutenção. Cada bico faz aplicação no formato de cone ou leque. Se o bico estiver oxidado ou não estiver bom não vai proporcionar uma boa cobertura sobre as plantas. É aí que mora o perigo”, sentencia Garrido.​​​​​​


Frente a esse cenário, os técnicos já trabalham com um percentual, mesmo que indefinido, de cachos completamente apodrecidos na safra de 2024, ou o que os produtores chamam, no campo, de “grão preto”.

Embora a incidência de míldio seja maior nas uvas de ciclo médio e tardio, algumas variedades precoces não escaparam. Garrido explica que o controle da mufa é dificultado, principalmente, pela aplicação do fungicida de maneira incorreta e pela impossibilidade do manejo durante os períodos chuvosos. “Uma aplicação quando não é bem feita deixa pontos, na planta, que não tiveram boa cobertura”, lembra.

Todeschini também relata o aparecimento recente da doença conhecida como “varíola” ou “carvão”. Seu agente causador é o fungo Elsinoë ampelina Shear, que ataca todos os tecidos jovens, verdes e tenros da videira, como as folhas, pecíolos, ramos, gavinhas, inflorescência e frutos. “É um fungo que dá na folha, na flor e quando não tratado na florada, aparece agora, antes do crescimento da baga, que fica escura, vai caindo e (o produtor) vai perdendo peso na produtividade”, elucida o extensionista da Emater/RS-Ascar.

Mudanças no manejo para enfrentar o clima

Os produtores de uva foram orientados a alterar o sistema de adubação para minimizar a perda de nutrientes do solo e a ajustar a pulverização de herbicidas porque a vegetação nos vinhedos protege o terreno da chuva

Colheita manual da uva | Foto: Zéto Telökem/Divulgação/CP

Em ano de El Niño, fenômeno marcado pelo aquecimento anômalo das águas do Oceano Pacífico, os viticultores profissionalizados já sabem, de antemão, que precisam modificar a estratégia de manejo dos parreirais. Neste ano, o sinal de alerta mundial foi dado ainda em junho, quando o Centro de Previsão Climática da Administração Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOOA) disparou comunicado no qual confirmou o fortalecimento gradual do fenômeno entre o final do outono e o inverno. Mas no grupo de 150 famílias assistidas pelo projeto de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) do Instituto de Gestão, Planejamento e Desenvolvimento da Vitivinicultura do Estado do Rio Grande do Sul (Consevitis-RS) as mudanças começaram ainda em maio deste ano.

A época foi marcada pelo ingresso das propriedades familiares no projeto, custeado por recursos do Fundo de Desenvolvimento da Viticultura (Fundovitis), mas também foi quando se iniciou a preparação para o enfrentamento das famílias às extremidades climáticas ainda não confirmadas, mas já esperadas. “Em maio, no início do projeto, já tínhamos um descritivo de El Niño de média para alta intensidade. Então, começamos a nos preparar para o pior, para a situação mais complexa possível”, conta o coordenador do projeto Ater, Leandro Venturin. Na prática, as propriedades, que contam com um assistente técnico durante todo o período de vigência do trabalho – previsto, inicialmente, para se estender até abril de 2024 –, já começaram a manejar a fertilidade do solo. Se os repasses do Fundovitis forem efetivados nos períodos seguintes, o projeto terá duração total de três anos.

Para enfrentar o problema, confirmado pelas autoridades climáticas como de intensidade moderada a forte, a ordem era alterar o sistema de adubação para minimizar a lixiviação dos nutrientes da terra, potencializados pelo aumento da umidade. “Também eliminamos o uso de herbicidas, porque a vegetação não deixa a chuva arrastar o solo bom e começamos a ajustar a pulverização de forma adequada ao clima”, relata Venturin. Com isso, as aplicações foram realizadas de maneira mais assertiva, de forma a reduzir o impacto negativo das doenças da videira, ao contrário dos que intensificam o uso de fungicidas proporcionalmente ao aumento da chuva.

​​​​​​Apesar de alguns produtores pontuais terem registrados perdas próximas a 80% em função das duas ocorrências de granizo na região, o saldo é positivo – pelo menos, frente às condições climáticas registradas até a segunda quinzena de dezembro. A estimativa é que a quebra da safra das pequenas propriedades fique entre 10% e 15% em relação ao ano passado. “Tínhamos previsão de pouco frio, que se confirmou. O agricultor fala que brotou menos uva. Mas nosso índice de perda é menor do que a projeção geral da Serra”, avalia Venturin.

O presidente do Consevitis, Luciano Rebelatto acredita que a diminuição da colheita da uva na Serra, em 2024, fique na casa dos 30%, podendo aumentar de acordo com as condições climáticas em janeiro e fevereiro. O prognóstico conta com uma safra em torno de 600 milhões de quilos em 2023, segundo ele. E que, mantidas as atuais condições climáticas, poderá se consolidar em um volume menor em 2024. De qualquer forma, ele evita traduzir a estimativa em números, dada a incerteza meteorológica relacionada ao verão. “Se continuar chovendo, vamos ter que corrigir esses dados porque a uva vai de verde para podre”, alerta.

Fundovitis custeia assistência técnica

O projeto Ater se renova e se ajusta anualmente. A iniciativa teve início em 2008, quando o então Instituto Brasileiro do Vinho, oficialmente extinto em outubro de 2019, identificou a necessidade de o viticultor ter acompanhamento técnico especializado para qualificar a produção vitivinícola gaúcha. “Na época, a função da assistência técnica era apagar incêndio. Então, começamos a desenvolver o tratamento das causas do problema. Propusemos um diagnóstico com mais de 70 itens analisados (gestão, produção, organização, estrutura física, etc). Montamos um plano de trabalho com ações de curto, médio e longo prazos para qualificar a produção de acordo com a demanda das vinícolas”, recorda Leandro Venturin.

Atualmente, o número de vagas depende dos recursos financeiros disponíveis. A chamada pública é direcionada ao setor por meio das entidades, como a União Brasileira de Vitivinicultura (Uvibra), a Associação Gaúcha de Viticultores (Agavi) e a Federação das Cooperativas Vinícolas do Rio Grande do Sul (Fecovinho), dentre outras. “Fizemos reunião com as entidades e apresentamos o plano de trabalho com alguns critérios de seleção. Para participar, o agricultor precisa estar disposto a vincular sua produção à alguma vinícola, a ter sucessão familiar na propriedade – para que o negócio tenha continuidade – , e esteja aberto a adotar as recomendações técnicas. As entidades, por sua vez, acionam as vinícolas, que indicam famílias para o processo de qualificação. As pequenas propriedades, então, passam para a segunda etapa do projeto, através da qual recebem um técnico para orientar a produção.

Crise impulsiona avanço técnico e operacional

Cooperativas admitem que safra pode ser menor, mas têm avaliação de que os investimentos feitos na qualificação dos associados e no monitoramento climático vão garantir produção de bebidas

Colheita da uva na Vinícola Garibaldi | Foto: Augusto Tomasi/Divulgação/CP

O monitoramento estratégico do clima, aliado à qualificação técnica e operacional, é o trunfo das cooperativas vinícolas Aurora e Garibaldi para garantir a maior produtividade possível nesta safra. Assim como a produção vitícola da Serra em geral, ambas contam com um percentual de quebra no que será colhido a partir da segunda quinzena de dezembro, com as variedades mais precoces, e seguirá até fevereiro e março, com as uvas de ciclo tardio.

A confiança está na assertividade do manejo adotado pelos fornecedores, cujas perdas esperadas são pontuais. E também provém de todas as melhorias implementadas neste ano, após assinarem Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho devido à contratação de empresa terceirizada que, em fevereiro deste ano, mantinha safristas em condições consideradas pelas autoridades como análogas à escravidão.

Segundo o engenheiro agrônomo e gerente Agrícola da Cooperativa Vinícola Aurora, Maurício Bonafé, os maiores desafios das 650 famílias ligadas à indústria, por enquanto, concentram-se no combate ao míldio (mufa) e à podridão cinzenta, também conhecida por mofo-cinzento e causada pelo fungo Botrytis cinerea. Tanto uma como a outra doença se desenvolvem em ambiente úmido e quente, com temperaturas acima de 25 ºC. “O clima está facilitando a vida do fungo e dificultando a da planta. Acreditamos que as perdas serão pontuais e que não tenhamos uma queda maior do que 10% na safra”, projeta Bonafé. Assim, a colheita está estimada em torno de 65 milhões de quilos em 2024, ante os 70,5 milhões de quilos de uva obtidos em 2023.

Ainda neste mês de dezembro, a colheita da Aurora começa com as variedades precoces, plantadas em regiões mais quentes e que, por isso, amadurecem antes que as demais. Dentre elas, estão a BRS Magna, a Chardonaz e Malvasia de Candia Aromática. Elas seguem colhidas em janeiro, quando o volume que sai do campo começa a aumentar, na primeira quinzena, com uvas como Bordô, Concorde e Pinot Noir. Na segunda metade do mês, também começam a chegar à vinícola uvas de variedades como Isabel precoce e Riesiling.

O pico da safra está previsto para começar em fevereiro, quando já estarão prontas para ser colhidas as uvas de ciclo médio, como Merlot, Tannat e Isabel. Em seguida, entram as de ciclo tardio, como Moscato Branco, Cabernet Sauvignon e BRS Carmen. “Estes são apenas alguns exemplos, pois trabalhamos com 56 variedades ao total, entre cultivares americanas, híbridas e viníferas”, explica Bonafé. O engenheiro detalha que as americanas e híbridas são destinadas à produção de suco e ao vinho de mesa. Já as viníferas são variedades importadas de regiões europeias e são matéria-prima para vinhos finos.

O especialista prefere não fazer projeções com relação à qualidade dos frutos, já que a chuva de janeiro e fevereiro ainda definirá a concentração de açúcar na produção dos 1,1 mil cooperados ligados à Aurora. “Não podemos falar em qualidade prejudicada. A uva está no campo e está sadia, mas ainda dependemos da questão climática. Se der mais chuva, sim, a qualidade será afetada”, condiciona.

Apesar do clima, a Cooperativa Vinícola Garibaldi projeta uma boa safra para 2024. A perspectiva de colheita está entre 25 milhões e 27 milhões de quilos, quantidade considerada “um pouco menor que a do ano passado”, conforme define a indústria. As variedades são as mesmas da safra passada: Isabel e Bordô para os sucos, e Moscato, Prosecco e Chardonnay para os espumantes. Por enquanto, a Garibaldi não registrou danos significativos na produção dos cooperados. Para os técnicos, a partir de agora, os maiores riscos são doenças advindas com as chuvas e a umidade acima do normal. Ou, ainda, das chuvas de granizo.

A aposta está no aumento das horas de sol e nos cuidados com os vinhedos. “Precisamos acompanhar e adequar o manejo nos vinhedos, através de orientação da equipe técnica, usando as melhores formas para controlar e proteger os vinhedos de doenças que possam comprometer o desenvolvimento dos cachos”, informa a empresa. A vinícola também destaca o plantio experimental de variedades mais resistentes às extremidades climáticas como forma de perpetuar a vitivinicultura e melhorar a qualidade de vida dos seus cerca de 450 cooperados. Os produtores integram 270 famílias espalhadas por 18 municípios da Serra, como Garibaldi, Santa Tereza, Monte Belo do Sul, Coronel Pilar e Farroupilha. “Cada associado tem autonomia para contratar safristas a fim de auxiliar nos vinhedos, seguindo a política de boas práticas que, há anos, desenvolvemos e foram reforçadas com a formalização de nosso setor de compliance”, detalha a empresa.

A expectativa da cooperativa Garibaldi é fechar 2023 com crescimento de 10% na produção de espumantes em relação ao ano passado. A estimativa é de que, no total, mais de 6,5 milhões de garrafas da bebida sejam vendidas. “Nós sempre acreditamos que as crises são oportunidades de melhorias, de avanços. E foi isso que fizemos, revendo processos e aprimorando nossa política de contratação de serviços terceirizados e de seleção de prestadores de serviço”, informa a cooperativa.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895