Gilberto da Silva passou 30 anos trabalhando para o Estado em uma profissão que só teve sua periculosidade reconhecida há oito anos. De 1990 a 2024, ele atuou controlando a emissão de notas fiscais nas operações interestaduais na divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
Em uma escala de 12h por 24h, entre um barulho constante de caminhões, Gilberto fazia a conferência de todos os tipos de cargas, inclusive – e principalmente – daquelas pouco salubres, como câmaras frias e combustíveis. No fim do mês, entretanto, seu contracheque – e o dos demais colegas – não contava com um adicional em função dos excessos da profissão. Por isso, a medida encontrada por muitos foi buscar esse direito na Justiça.
Em 1994, ele e demais colegas entraram com uma ação coletiva pedindo o reconhecimento da insalubridade. Quatro anos depois, em 1998, tiveram a causa ganha. Mas foi só no ano passado, em 2024, quando Gilberto finalmente se aposentou, que o Estado incluiu seu precatório na lista dos 92.996 que aguardam pagamento.
Ainda que a ação seja antiga, Gilberto ocupa a posição de número 81.736 na lista. Mas isso pouco diz sobre quando, de fato, a dívida será quitada. Isso porque não há nenhuma previsão para esses pagamentos.
No caso de Aida dos Santos Carlos, a espera foi de 10 anos. A professora aposentada do Estado entrou na Justiça contra o Estado há mais de 15 anos, em busca de correções salariais provenientes de alterações na Lei Brito. Em 2015, recebeu de seu advogado a notícia de que o Tribunal de Justiça havia determinado o pagamento de seu precatório. Aguardou desde então e, em fevereiro, recebeu a boa notícia. Mas, aos 76 anos, Aida temia que não fosse receber os R$ 159 mil que o Estado lhe devia em vida e, com isso, tivesse de optar, novamente, pelo “plano B”: fazer um acordo.
Via de regra, os precatórios devem ser pagos por ordem cronológica. Ou seja: o precatório de 2015, de Aida, por exemplo, entra na frente da lista de pagamento de um precatório de 2024, de Gilberto. No entanto, dentro dessa cronologia, há alguns fatores, como a natureza do precatório (alimentar ou comum) que “mudam” a ordem das coisas. Os precatórios de origem comum são aqueles que não têm relação com questões salariais, como indenizações por dano moral. Já aqueles de natureza alimentar versam sobre vencimentos, proventos, pensões, benefícios previdenciários e indenizações por morte e invalidez.
Nessa divisão, os precatórios de origem alimentar são preferenciais em relação aos comuns. Mas há outros critérios dentro da lista dos alimentares que tornam alguns precatórios “superpreferenciais”. São eles os credores com doença grave, os credores com mais de 60 anos e os credores com deficiência física.
Aos 61 anos, Gilberto passou a integrar a classe dos superpreferenciais. A classificação, contudo, pouco lhe dá esperança de receber esses valores tão cedo. “Tenho consciência de que tenho um valor a receber e não tenho esperança de receber em vida.” Assim, o aposentado crê que os quase meio milhão que lhe são devidos devem ficar de herança para a sua única filha, Letícia.
Seu caso não é o único, aliás. Segundo o procurador-geral do Estado Eduardo Cunha da Costa, a transferência de precatórios para herdeiros é bem comum, uma vez que muitos derivam de ações antigas. “Tem muito precatório, por exemplo, que decorre de ação na época chamada de 'pensão integral', quando a legislação definia que o pensionista tinha que receber metade do que o titular (recebia), e o Supremo (Tribunal Federal) disse na época que isso era inconstitucional. Então aquela lei caiu e as pessoas tinham o direito de reaver. Só que já estávamos falando de uma pessoa que era pensionista quando entrou com a ação. Então, muito possivelmente, essas pessoas já vieram a falecer. Então, com frequência, acontece esse ‘desmembramento’ do precatório.”
Foi o que aconteceu com uma das clientes do advogado Ricardo Bertelli, que há 18 anos atende precatoristas. Ela dependia do recurso para melhorar questões pessoais e semanalmente ligava para o advogado buscando informações do processo. Portadora de doença grave, solicitou a inclusão do seu precatório na lista dos “superpreferenciais”. Não conseguiu, porém, ver sua solicitação deferida. Acabou falecendo em decorrência da doença. Seu espólio ficou. Em casos como esse, o precatório retorna à ordem cronológica original, saindo da lista de preferência, e os herdeiros precisam ser habilitados, processo nem sempre simples.
Alternativa Preferida
Mas há alternativa para quem tem pressa em receber: um acordo. De tempos em tempos, o governo lança editais de conciliação para precatoristas interessados em realizar um acordo com o Estado e, assim, receberem os seus pagamentos em tempo mais curto, sob condição de deságio de 40%. Ou seja: com 40% a menos do valor atualizado do precatório, além de demais descontos.
Essa modalidade foi aderida pelo RS em 2015 e fica sob a alçada do Tribunal de Justiça (TJRS) realizar essa intermediação, que regulamenta e publica os editais de convocação, habilita os beneficiários, homologa os acordos e realiza os pagamentos à vista. Na fila dos acordos, os critérios de pagamento são os mesmos, devendo ser respeitada a cronologia e suas especificidades.
Ante a incerteza da fila habitual, há quem opte pela fila dos acordos – que é relativamente menor – como Aida vinha fazendo. Não seria a primeira vez. A aposentada já teve de abrir mão da integralidade de um precatório. À época, com um dos filhos entrando na faculdade, optou por receber o valor de deságio para conseguir bancar parte dos seus estudos.
Em 2024, 51% dos precatórios pagos pelo Estado foram por meio de acordos, contemplando 6.348 credores e empenhando R$ 893,26 milhões, segundo dados do portal dos precatórios de dezembro de 2024. Inaugurada em 2022, a 8ª rodada de acordos – atual – recebeu 44.467 manifestações de interesse e ofereceu 35.192 propostas para credores aptos, contemplando 79% dos pedidos.
O acordo, entretanto, não vem com data de quando os valores devidos serão recebidos. Esse é mais um dos fatores que torna impossível precisar quando um pagamento de precatório deve sair. O procurador-geral do Estado, Eduardo Cunha da Costa, reconhece essa incerteza. Mas o horizonte é mais claro para aqueles que consideram fechar um acordo. Isso porque a procuradoria trabalha em uma sistemática mais célere e simplificada para ser lançada já em novo edital. Sem data definida, o governo tem perspectiva de publicação ainda no primeiro quadrimestre de 2025.
Para Ricardo Bertelli, a decisão de fazer acordo ou não vai das necessidades de cada um. No entanto, como boa parte dos precatoristas espera há muito para receber seus valores, é comum que acabem “cedendo” aos acordos. Até porque, segundo o advogado, que é vice-presidente da comissão de precatórios da OAB-RS, vem sendo por meio dos acordos que o Estado de fato tem empenhado esforços para realizar os pagamentos. Em 2023, o maior percentual de precatórios pagos também foi por meio de acordos. Foram 8.004 beneficiados (69,7%) e R$ 1,18 bilhões empenhados.
O mercado de precatórios
Acontece que, entre a imprecisão e morosidade do Estado em cumprir com os acordos e a necessidade das pessoas de receberem aquilo que lhes é seu por direito, a iniciativa privada viu uma oportunidade de lucrar e os precatórios viraram investimento.
Atualmente, centenas de empresas e escritórios de advocacia se especializaram na compra e venda de precatórios. A sistemática é a seguinte: o credor apresenta seu precatório, a empresa analisa e faz uma proposta, incluindo, por óbvio, um percentual de deságio. O diferencial da oferta é o pagamento imediato e à vista, que é tentador para quem necessita, com urgência, daquele recurso.
Em posse do precatório, as empresas vendem esses processos em forma de ação. “O investidor está jogando com isso para ter o deságio. Para essas carteiras de investimento, eles tratam desse assunto como se fosse o seguinte: investem na bolsa, investem em fundos, investem em precatórios. É o que eles chamam de diversificar investimentos”, explica Aragon Dasso, professor de Administração Pública da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).
Nessa transição entre quem vende e compra, quem mais lucra, contudo, é o intermediador. Normalmente, explica o professor, as empresas que compram e vendem possuem uma taxa de administração, onde acabam levando mais pelo negócio, ainda que quem invista ou recomende investimentos em precatórios seja uma pessoa especialista no assunto. “Tem várias formas de querer se utilizar do Estado para benefício próprio e, se alguém se beneficia, não é um processo de ganha-ganha. Tem alguém sendo prejudicado."
A outra modalidade encontrada por quem precisa desses valores é a venda de precatório para empresas que possuem dívidas com o Estado. Funciona da seguinte forma: o credor vende o seu precatório para uma companhia em débito com o governo – dívidas de ICMS, por exemplo. Essa empresa assume o débito da pessoa física – geralmente menor do que o seu próprio, quitando, assim, sua dívida. Ela paga ao precatorista um valor acordado. De 2018 a 2025, já foram R$ 1,78 bilhões pagos em precatórios desta forma, segundo os dados do Portal de Precatórios, da Secretaria da Fazenda.
“A questão que fica é: sempre onde há omissão por parte do Estado, vamos ver um particular tirando proveito em cima disso”, resumiu o advogado Ricardo Bertelli, presidente da comissão de precatórios da OAB-RS.
Um problema histórico do Rio Grande do Sul, fruto de mau planejamento
vra “precatório” foi sinônimo de preocupação dentro e fora das paredes do Palácio Piratini, especialmente em meados dos anos 2000, quando uma decisão da Justiça permitiu a suspensão dos pagamentos. Preocupação para o Estado, que não dispunha dos valores para quitar as dívidas; e preocupação para quem aguardava, sem perspectiva nenhuma, para receber os valores que lhe eram devidos.
O bloqueio, à época, resultou não só em um acúmulo da dívida, como também deu início a um movimento social que viria a ser conhecido nacionalmente: as tricoteiras.
Diariamente, servidoras do Executivo passaram a se reunir em frente ao Palácio Piratini para tricotar, em forma de protesto, pelo não pagamento dos seus precatórios. O movimento ganhou forma e visibilidade e o tricô chegou até Brasília. As tricoteiras gaúchas foram um dos impulsionadores da emenda à Constituição de 2009 que determinou as novas regras para o pagamento de precatórios por estados e municípios, dentre elas a de que 1,62% da Receita Líquida Corrente (RCL) deveria ser destinada para esse fim.
Não viram, contudo, esse feito se concretizar. Em 2007, boa parte das integrantes do movimento deixou Porto Alegre em um voo da TAM com destino a São Paulo, porém, o avião se acidentou no aeroporto de Congonhas. O acidente é reconhecido hoje como o maior da história da aviação brasileira. Com as perdas, o movimento foi minguando, mas deixou frutos e, dois anos depois, a emenda foi aprovada.
Desde então, o Rio Grande do Sul vem empenhando 1,5% da RCL para o pagamento desses precatórios, com eventuais aportes extras desde 2016 e, em janeiro de 2024, o percentual ganhou um leve incremento, passando para 1,75% da RCL. A dívida, contudo, é viva e segue uma crescente, somando hoje R$ 17 bilhões.
No último ano, o Piratini destinou R$ 1,8 bilhão para o pagamento dessas ações. Para chegar a esse valor, contou com um empréstimo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) de 500 milhões de dólares, quase R$ 5 bilhões. A previsão para este ano é de contratação de um novo aporte.
Apesar disso, o estoque de precatórios do governo gaúcho, que resulta em uma dívida bilionária, somado ao fato de que essa é uma fila que nunca para de crescer, visto que ações são ganhas todos os dias, revela uma problemática que perpassa governos: “A origem da dívida é uma opção política”. Aragon Dasso, professor de administração pública da Ufrgs, explica: “Essa opção política transformou os precatórios em um recurso à disposição de governos quando esses recursos não deveriam ser desses governos, deveriam ser dos cidadãos e das cidadãs que tinham direito a esses recursos por uma decisão transitada em julgado”.
Em suma, a crise em torno dos precatórios deriva de sucessivas decisões políticas nas quais governos, ao enfrentarem crises fiscais em que a arrecadação foi menor do que as despesas, precisaram fazer escolhas sobre onde empenhar esses recursos. E não foi no pagamento dos precatórios.
O caso gaúcho, especificamente, tem origem em um mau planejamento. O professor explica que o Estado foi vanguardista na concessão de direitos sociais, criando uma administração pública mais robusta para a prestação de serviços. “Não se tem indicadores de saúde superiores aos outros estados sem servidores atuando na área da saúde, sem ter uma estrutura da saúde à disposição. Não se tem uma educação e um ensino público de melhor qualidade sem ter, também, uma estrutura e servidores para isso”, exemplifica. O problema, contudo, foi a falta de planejamento para o que viria depois, o envelhecimento da população e, consequentemente, desses servidores, que incharam a previdência.
“Quando a crise fiscal chegou, chegamos a um dilema. E a culpa é dos servidores? Claro que não. Mas teremos um conjunto importante desses precatórios que são em decorrência de ações de servidores públicos visando pagamentos, diferenças de pagamentos por benefícios que o Estado não estava conseguindo honrar. Aí temos uma parte da explicação desse crescimento dos precatórios”, conta Aragon Dasso.
A outra metade desse problema caminha em conjunto com o crescimento do Estado. Mas, nesse caso em específico, das cidades.
Com o desenvolvimento dos municípios, uma série de obras, como a de ampliação de avenidas, por exemplo, começou a ser feita. Para tal, a população que vivia ao redor precisou ser removida para permitir essa expansão e, consequentemente, indenizada. Boa parte o foi, a outra resultou em brigas judiciais. E, assim, mais precatórios.
“Esse cálculo atuarial, pensando no Estado a longo prazo, tanto no caso das ações a longo prazo, quanto nas ações de desapropriação, com certeza foi mal feito ou não realizado. Ou seja: faltaram ações a longo prazo e isso só quem faz é um estadista. Um gestor que pensa além do seu mandato”, conclui o professor.
Assim, o resultado de um mau planejamento e da ausência de um pensamento para além de mandatos foi um crescimento acelerado de precatórios em um Estado com as contas públicas estranguladas. Por isso, como Aragon já definiu: a origem dos precatórios é uma escolha política.