Após seis meses da tragédia, Vale do Taquari segue processo de recuperação
Região recebe nesta sexta-feira a primeira visita do presidente Lula
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Para quem passa distraído pelas ruas de Muçum e Roca Sales, cidades do Vale do Taquari, nada há de diferente. O comércio aberto, alguns transeuntes e o silêncio típico das cidades do Interior escondem, superficialmente, as marcas da tragédia. Um olhar um pouco mais atento, contudo, verá que as cidades ainda exibem resquícios claros do terror que passaram há seis meses atrás. Ambos os municípios foram devastados pelos temporais de setembro de 2023, que resultaram em uma enchente descomunal que arrastou as cidades. Pelas calçadas e ruas, não há mais barro nem lama, mas casas ainda estão em ruínas, as frequentes placas de “aluga-se” em salas comerciais e as marcas de água e lama em prédios evidenciam que o local foi palco de um desastre
É esse cenário que o presidente Lula, que chega a Lajeado nesta sexta-feira, encontrará. Pela primeira vez na região desde o ocorrido. A sua vinda é carregada de expectativa por parte dos gestores que tentam, aos poucos, reerguer as cidades. Meio ano após a tragédia, Muçum e Roca Sales tentam recuperar a sua economia e as perdas materiais, mas falham quando o assunto é o atendimento à população, que carrega traumas incuráveis, temores frequentes e uma desesperança latente.
Vale do Taquari seis meses após enchentes
Em ambas as cidades, as expectativas recaem, em sua maioria, na entrega das casas, sejam elas permanentes ou provisórias. Em Roca Sales, quatro famílias ainda moram de modo improvisado dentro do ginásio municipal. Os tapumes e cortinas servem para preservar aquilo que se pode da privacidade. Todos os dias, o aposentado Santo Lazarotto, 58, visita as casas provisórias que ainda estão em construção a poucos metros do ginásio. Acompanha, passo por passo, a evolução de uma entrega que já deveria ter ocorrido há meses. A promessa do prefeito é de que até o fim do mês eles possam se mudar e, antes do fim do ano, já tenham a casa permanente que foi prometida. Serão 20 famílias atendidas.
Reconstrução
Lazarotto lamenta a lentidão do poder público, tanto no que diz respeito à moradia, quanto à perícia que deve analisar o pedido de aposentadoria da esposa, Giselda Maria Trindade Pacheco, 60. Com um salário mínimo, ele tem sofrido para arcar com as despesas, ainda que receba ajuda alimentícia do Centro de Referência e Assistência Social (CRAS) municipal. Afirma que, se a esposa já tivesse conseguido a aposentadoria, poderiam, ao menos, alugar uma casa por meio do aluguel social. “Nada é como o cantinho da gente”, diz.
O aposentado perdeu a confortável casa em que vivia no centro da cidade, quando foi resgatado com a água já no peito, perto de submergir. O tamanho da nova moradia – uma peça com sala e cozinha integrada e um banheiro – não preocupa, desde que venha. Os poucos móveis ganhos, por doação, “hão de caber”, conta. “É só o que queremos”, enfatiza. Para tentar não desanimar, prefere não visitar a antiga moradia, porque “a vontade é de chorar” com “tanta destruição”. “Devagarinho, tá indo.”
Júlia Silva, 28, também se agonia com a espera. Uma das moradoras do ginásio, ela se exaspera quando relembra os minutos intermináveis em que fugiu, só com a roupa do corpo, da inundação que levou por inteiro a casa em que vivia com o marido. No caos, porém, encontra motivos para comemorar: as faxinas, de onde ela retira o seu sustento, aumentaram a frequência desde o episódio fatídico. O marido, que trabalha numa empresa de curtume, maior indústria da região, também não perdeu o emprego. “A gente tá juntando, o CRAS ajuda com a comida, então a gente junta (o dinheiro) porque na nossa casa não vai ter ajuda, mas pelo menos vamos ter dinheiro.” E, apesar dos pesares, ela sequer cogita deixar a cidade em que escolheu para viver.
Região busca se recuperar
Ao contrário de Júlia, a cabeleireira Clarines Maria Kunzler, 48, não tem a mesma empolgação na voz quando o assunto é mudar. Sofrendo, inclusive, quando tem de voltar. A casa de Clarines, que fica na parte inferior ao seu salão de beleza, foi completamente destruída. Do comércio, sobraram alguns móveis, o que permitiu que ela, em poucos dias, conseguisse abrir o seu comércio novamente. Apesar disso, ainda não consegue descer as escadas para encarar os resquícios do que um dia chamou de lar. Seis meses após o ocorrido, foi agora que começou a limpar, aos poucos, os cômodos.
Por um bom tempo, foi com o marido para a casa da filha, que, junto com o neto de Clarines, mora em um edifício no terceiro andar – o único que não foi tomado pelas águas. É com desânimo que conta sobre as vezes que precisa voltar para casa depois de longas viagens “é que não parece casa”. O salão, porém, se tornou aconchego para aqueles clientes que vão conversar e, na tentativa de esquecer as perdas materiais, investem no exterior, na beleza.
Diferentemente de Clarines, Vergínio Bérte planeja deixar a casa em que viveu, ainda que tenha passado 40 anos de sua vida lá. Os alertas de chuva arrepiam – a ele e a todos os entrevistados – e a ideia é ir morar perto dos irmãos, em Bento Gonçalves, nos próximos anos. Ele reclama da lentidão do poder público nas respostas à sociedade, principalmente no apoio ao comércio. “Se vier uma dessa de novo, a cidade acaba. Vira fantasma.”