Lei Kiss trouxe avanços, mas sofreu retrocessos

Lei Kiss trouxe avanços, mas sofreu retrocessos

Tragédia mobilizou grandes modificações na legislação, que acabaram retrocedendo anos depois. Apesar dos recuos, regras em vigor são mais duras do que há dez anos

Felipe Samuel

Apesar das muitas mudanças na legislação que para especialistas acabaram por descaracterizar a Lei Kiss, há consenso que fiscalização do Corpo de Bombeiros foi qualificada e intensificada após a tragédia no Estado

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Aprovada na Assembleia Legislativa, em 2013, ainda sob o forte impacto da tragédia da boate Kiss, a Lei 14.376, conhecida como Lei Kiss, tornava mais rígida as normas de segurança, prevenção e proteção contra incêndios no Rio Grande do Sul. Sancionada em 26 de dezembro daquele ano pelo então governador Tarso Genro, a lei garantia, a partir daquela data, prazo de dois anos para os municípios se adaptarem às novas determinações estabelecidas.

Entre as medidas previstas estavam adequação das edificações existentes e áreas de risco de incêndio, além de prever as penalidades e infrações aplicáveis ao descumprimento das novas diretrizes. A lei acabou passando por modificações e flexibilizações. Em 2016, no governo José Ivo Sartori, sob o pretexto de desburocratizar o processo de obtenção de alvarás, a Assembleia aprovou a Lei Complementar n.º 14.924, que reduziu prazos e exigências para o funcionamento de estabelecimentos comerciais e alterou obrigações de empreendimentos de baixo e médio risco de incêndio com área total de 200 m².

Era o início da descaracterização da Lei Kiss. Isso porque o novo regramento desobrigava, em caso de renovação de alvará do imóvel, a contratação de engenheiro ou arquiteto para a Anotação de Responsabilidade Técnica (ART). Ao mesmo tempo, criou o Certificado de Licença do Corpo de Bombeiros (CLCB), um documento que tem como função certificar que um espaço corre baixo risco de incêndio. No ano passado, como parte do processo de desidratação da lei, a Assembleia aprovou o PLC do Executivo 182/2022, que extingue o licenciamento de edificações e áreas de risco por meio do CLCB.

A mudança, aprovada em 22 de novembro, estabelece que edificações ou áreas de risco que antes eram reguladas pelo licenciamento simplificado fiquem isentas de alvará, embora determine a necessidade de implantação de medidas de segurança contra incêndios para atendimento à Lei Kiss. A liberação beneficiou 991 tipos de empresas que não vão precisar emitir alvarás de incêndio junto ao Corpo de Bombeiros Militar (CBM) antes de abrir as portas. O texto da lei inclui edificações e áreas de risco classificadas com grau de risco de incêndio médio como isentas de alvará.

As frequentes alterações e flexibilizações da legislação em uma década foram alvo de críticas de entidades como o Sindicato dos Engenheiros (Senge), Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio Grande do Sul (Crea-RS) e Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS).

“A precarização da precarização”

Engenheiro civil, doutorando em Engenharia de Segurança aos Incêndios na Universidade de Coimbra, em Portugal, e diretor do Senge, João Leal Vivian avalia que a Lei Kiss – conforme elaborada e sancionada em 2013 – reúne conceitos mais modernos, como carga de incêndio, comportamento de materiais de revestimento, acabamento e segurança estrutural com relação ao incêndio. Apesar de representar um avanço técnico, ressalta que faltou período de transição para implementar as medidas.

“Como é que troca um pneu de um carro em andamento? Não tem como, tem que parar e trocar. E a Lei Kiss, não. Foi publicada e estava em vigor. E foi aquela turbulência geral com ataques à Lei Kiss. Diziam que era muito rigorosa, que não era aplicável e uma série de questionamentos. Então em 2014 já começam a fazer modificações nela. Foi a primeira precarização, digamos assim, mas de pequeno porte, sem tanto impacto. Mas em 2016, sim, foi uma grande modificação”, destaca. “Do nosso ponto de vista, um problema dessa implantação de 2016 é que não tem a participação do profissional legalmente habilitado, um engenheiro, um arquiteto, por exemplo”, alerta, acrescentando que o CLCB também não tem vistoria dos bombeiros. E em 2022, para atender a lei de Liberdade Econômica tanto federal como estadual o CLCB foi extinto. “O que já foi uma certa forma de precarização em 2016, agora é a precarização da precarização, porque extingue completamente o modelo que no nosso ponto de vista já tinha problemas de ordem técnica”, critica. 

Melhorias reconhecidas

Mesmo com críticas pontuais, Leal avalia que a legislação atual é mais rígida para edificações de risco alto de incêndio e edificações de reunião de público, como uma casa noturna. Ele reconhece avanços e destaca a fiscalização dos bombeiros. Entre os avanços na Lei Kiss, também pontua a separação do Corpo de Bombeiros Militar (CBM), a qualificação da corporação na última década e os investimentos na contratação de pessoal. Além disso, ressalta a criação de dois cursos de pós-graduação desenvolvidos pela Unisinos e pela Ufrgs no Estado. “Esses cursos estão formando constantemente Engenheiros de Segurança contra Incêndio porque são cursos de especialização. Então a gente tem também um avanço enorme da questão da formação profissional”, sustenta.

Já o governo do Estado, conforme manifestação por nota, avalia que o licenciamento em segurança contra incêndio junto ao Corpo de Bombeiros Militar assegura que a edificação possua um conjunto mínimo de medidas de segurança eficientes à prevenção contra incêndio, visando preservar e proteger a vida dos ocupantes das edificações. 
“Embora dispensadas do licenciamento, as edificações e áreas de risco de incêndio de baixo risco podem, a qualquer tempo, ser objeto de fiscalização por parte do Corpo de Bombeiros Militar do Rio Grande do Sul. Nessas inspeções são verificados todos os sistemas e equipamentos de segurança contra incêndio, o treinamento exigido e se a utilização do local corresponde ao fim para o que foi licenciado, entre outros requisitos de segurança”, complementa. 

“É importante destacar que na segurança contra incêndio existem três atores responsáveis por garantir a correta aplicação das exigências da legislação: o proprietário ou responsável pelo uso da edificação, o responsável técnico (engenheiro ou arquiteto) e o Corpo de Bombeiros Militar, cabendo a cada um uma parcela na responsabilidade para com a efetiva segurança da edificação. É essa tripartição de responsabilidades, cada qual cumprindo suas atribuições, que faz com que a segurança dos usuários das edificações seja garantida”, frisa. “É importante referir que as ações adotadas a fim de desburocratizar os processos de licenciamento estão relacionados à entrega de documentação e outros trâmites administrativos, não se relacionando com os equipamentos e sistemas de proteção contra incêndio, cujas exigências estão mais rigorosas após 2013, em comparação com a legislação anterior”, conclui a nota.


Correio do Povo
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