Rural

Turismo rural traz fôlego a produtores de cacau

Abertura de fazendas e produção própria de chocolate em regiões da Bahia revitalizaram cultivo da fruta e venceu crise histórica do setor

Cacaueiros são plantados em meio à mata Atlântica, ajudando a preservar a biodiversidade local, em um sistema chamado de cabruca
Cacaueiros são plantados em meio à mata Atlântica, ajudando a preservar a biodiversidade local, em um sistema chamado de cabruca Foto : Rodrigo Thiel/Especial/CP

A cultura do cacau ganhou novo significado e renda extra para agricultores de regiões da Bahia que começaram a fabricar chocolate e a abrir suas propriedades para turismo rural. “Trabalhamos com turismo rural há 18 anos aqui na fazenda. Por muito tempo, o turista vinha para Ilhéus (um das regiões produtoras) motivado apenas pelo universo de Jorge Amado. Com o tempo, isso está mudando. Cada vez mais as pessoas estão vindo para cá interessadas pelo chocolate e pelo cacau. Pelos seus sabores e sensorialidade”, afirma Gerson Marques, proprietário da fazenda Yrerê, no município, segundo o qual, na terra de “Gabriela, Cravo e Canela”, as estrelas da baixa temporada também são o chocolate de alta qualidade e seu potencial turístico.

Movimentada fortemente nos meses mais quentes do ano por conta de suas praias paradisíacas, a cidade litorânea fundada em 1534 tem encontrado no seu interior rural, marcado pela preservação da Mata Atlântica, uma forma de levar turistas o ano inteiro para o Sul da Bahia. Neste período de baixa temporada, o objetivo é fazer com que brasileiros e estrangeiros conheçam detalhes da Rota do Cacau, explorando fazendas históricas no sistema agroflorestal, principalmente no período da safra, entre agosto e novembro, e encantando-se pela produção regional durante a Chocolat Festival, que ocorreu entre os dias 17 e 20 de julho.

De acordo com o presidente do festival, Marco Lessa, cerca de 90 mil pessoas, turistas em sua maioria, passaram pelo Centro de Convenções da cidade durante os quatro dias de feira neste ano, considerada uma das maiores da América Latina relacionadas ao cacau e ao chocolate. O resultado disso está na movimentação de R$ 20 milhões na economia local e 100% da rede hoteleira ocupada no período, com o reflexo econômico podendo ser ainda maior por conta dos investimentos que devem ser firmados a partir das rodadas de negócio promovidas no evento.

Para Lessa, a feira, criada no final dos anos 2000, ajudou a transformar a vida dos produtores rurais e agricultores familiares, além de abrir uma nova fase na história do cacau na região Sul da Bahia. Isso porque, desde o final dos anos 1980, a produção local vinha sofrendo com os reflexos da praga chamada “vassoura de bruxa”, um fungo que adoece os galhos dos pés de cacau e impede o crescimento saudável dos frutos. A doença causou uma crise na região e no Brasil, fazendo com que o país caísse da primeira para a sexta posição entre os maiores produtores do mundo.

“A praga acabou com a plantação de cacau da Bahia. Caímos de 450 mil toneladas por ano para 90 mil toneladas. Isso gerou uma crise violenta. Em uma visita a Gramado, no Rio Grande do Sul, compreendi a importância do chocolate como matéria econômica e turística. Quando vim para cá, só se falava em crise e vassoura de bruxa. Era uma apatia, uma tristeza. Então pensamos em fazer um festival do chocolate para mudar esse cenário”, afirmou o presidente da Chocolat Festival.

Lessa revela que na primeira edição do festival em Ilhéus, realizado em 2009, já houve uma mudança de mentalidade entre os agricultores e o entendimento sobre a mudança que isso traria à atividade econômica. De produtores de cacau para commodities, passaram a reter a matéria-prima de alta qualidade, tornando-se também fabricantes de chocolate artesanal e guias para as visitas em suas fazendas históricas e algumas quase bicentenárias.

“Colocamos na cabeça deles que era possível ter esse rendimento extra a partir da experiência que poderia ser oferecida na fazenda, mostrando a plantação e contando a sua história. Teve que acontecer uma mudança de cultura, trazendo o cacau para a frente do negócio. A partir disso surgiram institutos, associações e cooperativas. A feira gerou um movimento no qual não se fala mais em crise, mas sim em esperança e em chocolate”, completou Lessa.

A partir do novo olhar gerado pela Chocolat Fest, os agricultores locais passaram a produzir o próprio chocolate e adaptar suas fazendas para receber turistas interessados em saber como o doce é feito, no processo chamado “tree to bar” (da árvore à barra). Um destes locais é a fazenda Yrerê, que fabrica chocolates de altíssima qualidade para a marca de mesmo nome. Nela, o proprietário Gerson Marques conduz o visitante para conhecer a forma como o fruto é produzido, por meio de um sistema agroflorestal difundido na região, chamado de cabruca.

Cabruca, plantio que garante sustentabilidade

Sistema que semeia o cacaueiro à sombra de árvores da Mata Atlântica assegura fruta certificada e chocolate de alta qualidade

Proprietário da fazenda Yrerê, Gerson Marques promove também visitas guiadas para turistas que visitam a região | Foto: Rodrigo Thiel/Especial/CP

O proprietário da fazenda Yrerê, em Ilhéus, Gerson Marques, explica que o método cabruca vem da palavra cabrocar, usada pelos agricultores do cacau com o sentido de roçar. Na prática, o manejo é feito plantando cacaueiros mais baixos entre árvores altas, comuns da Mata Atlântica. A fazenda Yrerê, que pertence à família de Marques há 30 anos, produz cacau desde os anos de 1820, quando a fruta foi trazida do Pará, de onde é originária. Desde que adquiriram o lote rural, localizado entre Ilhéus e Itabuna, também trabalharam no reflorestamento da área, que era usada para pastoreio, justamente para permitir uma convivência plena da fazenda de cacau com a natureza e a mata original.
Algumas das árvores produzem frutos há mais de 80 anos.

Ao todo, a Yrerê contabiliza uma produção de seis toneladas por ano, ou 400 arrobas (sacas com 15 kg). Como forma de controle de qualidade, amostras das amêndoas produzidas são encaminhadas para o Centro de Inovação do Cacau (CIC), da Universidade Estadual Santa Cruz (UESC). Caso atinja um índice maior de 6,5, em uma escala de 1 a 10, a matéria-prima é considerada de alta qualidade, recebe certificação de “Cacau Sul Bahia” e é utilizada para a fabricação de chocolates da própria marca, que existe desde 2011. A qualidade é avaliada por índices sensoriais, como sabor e aroma, entre outros. Abaixo de 6,5, é vendida como commodity para indústrias do setor. Cerca de 90% da produção da Yrerê é utilizada na marca própria.

“É uma agricultura feita dentro da floresta, com a plantação sequestrando carbono. Não é só fazer bem feito. Tem que ter todo um cuidado ambiental. Trabalhamos para chegar na champagne do chocolate. Não podemos pensar apenas em ser exportadores de commodity, pois estaremos na mão da indústria. Quando passamos a fazer o nosso próprio chocolate, com cacau fino de alta qualidade, pudemos trabalhar temas como saúde, sustentabilidade e também a questão social, com melhores condições de vida para os trabalhadores. É um senhor negócio, com uma excelente perspectiva para o futuro”, comemora Marques.

Na fazenda Yrerê, além de um ponto de venda da marca, o visitante pode conhecer todo o processo “tree to bar”, da produção agrícola do cacau à transformação de suas amêndoas em chocolate. Marques explica que o espaço recebe turistas de segunda à sábado, com público formado especialmente por pessoas vindas de estados “ao Sul”, como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Apesar disso, cerca de 5% dos visitantes são estrangeiros interessados no turismo de experiência. Durante a alta temporada, a fazenda recebe cerca de 50 visitantes por dia. Quando o porto de Ilhéus recebe cruzeiros, o número aumenta para 250. Durante a baixa temporada, o número cai para 30 pessoas por dia. Por trabalharem com matéria-prima de alta qualidade, a marca costuma produzir chocolates com 50% ou mais de cacau, atraindo principalmente quem busca por experiências e sabores diferentes dos tradicionais.

“É cada vez mais comum essa busca sensorial. Têm sempre algumas pessoas que não gostam logo de cara por ser mais amargo, mas é uma questão de maturidade. Hoje, os consumidores estão com o paladar mais maduro sobre isso. Existem estudos contratados por uma marca tradicional da região que apontam um crescimento médio de 7% a 10% ao ano no consumo desse tipo de chocolate, mesmo com a pandemia”, completou Gerson.

O incremento no consumo aliado ao potencial do turismo rural para a fazenda refletiu também em uma mudança social. Em vez de exportar talentos, a região passou a reter. Um desses exemplos é o do genro de Gerson Marques, João Prazeres, que largou o emprego de engenheiro em uma grande petroquímica, com especialização e atuação em energias renováveis, para tornar-se administrador da fazenda. “Aqui tem um potencial enorme e meus sogros precisavam de ajuda para dar continuidade na trajetória deles. Eu também queria mudar de vida, priorizando a saúde, então juntamos o útil ao agradável”, contou.

Desde que passou a administrar a propriedade, Prazeres também fez investimentos em energias renováveis para agregar ainda mais valor sustentável à marca, como a instalação de painéis fotovoltaicos e uso de cisternas para armazenar água. Além disso, ele destaca que o uso do sistema da cabruca, com a fazenda funcionando em meio à floresta, também aprisiona carbono.

Economia renovada

Chocolate é feito a partir do processo de secagem e fermentação das sementes do cacau e sua transformação em amêndoas | Foto: Rodrigo Thiel/Especial/CP

O potencial do turismo rural relacionado ao cultivo do cacau na região refletiu ainda na alavancagem de outros serviços por parte das fazendas e fábricas. Além de tour guiado na produção, a empresa Colina Benevides abriu um restaurante, gerando empregos e fomentando o desenvolvimento em diversos setores para a região, situação similar à que ocorre na Serra Gaúcha, por exemplo, com o turismo rural da uva e do vinho, além de oferecer ao turista uma experiência sensorial completa.
Uma das marcas da região com maior número de premiações internacionais em seus chocolates, justamente por agregar ingredientes regionais como jaca, cupuaçu, canjica e rapadura em suas barras, a empresa incluiu o chocolate no cardápio de seu restaurante através da carne ao molho, um dos pratos mais pedidos no restaurante. Gerente da Colina Benevides, Yakenne Laiza explica que a marca tem como propósito apostar nos sabores locais para crescer. “Nossa região sempre foi exportadora, mas agora perceberam que é possível fazer o chocolate de verdade, com forte presença do cacau, aqui do sul da Bahia.

Cuidados “tree to bar” são diferencial baiano

Plantio, cultivo, manejo da vassoura de bruxa, torrefação e refino são parte do processo para chegar no doce perfeito que atrai os turistas

Amêndoa do cacau é processada e transformada em chocolate de alta qualidade nas fábricas da região | Foto: Rodrigo Thiel/Especial/CP

Da colheita à barra, o processo de transformação das sementes do cacau em amêndoas e, posteriormente, chocolate demora cerca de 30 dias. Entretanto, um cacaueiro pode levar de três a cinco anos para começar a produzir frutos. Vale destacar ainda, ao longo do plantio e cultivo, o cuidado com a remoção dos galhos infectados com a vassoura de bruxa. Conheça as etapas do processo “tree to bar” feito nas fazendas de cacau do Sul da Bahia:

Quando o cacaueiro dá frutos, a remoção deles acontece de forma manual e selecionada, separando os frutos de melhor qualidade. O cacau é colocado no chão, junto da árvore, para dar início ao processo de fermentação. Depois de retiradas de dentro do cacau, as sementes são colocadas em caixas (principalmente de madeira) e cobertas com folhas de bananeira para fermentarem e tornarem-se amêndoas. Após, são expostas ao sol em estruturas de teto retrátil para secarem naturalmente.

O passo seguinte é a torrefação e moagem, onde os sabores e aromas são despertados. Depois, são trituradas para obtenção do nibs (subproduto formado 100% por cacau) ou para formação da massa de cacau que servirá de base para o chocolate. Na conchagem e no refino, a massa de cacau recebe outros ingredientes da receita desejada. Também é feito um refino da massa que torna cremosa a textura do chocolate. Por fim, é feita a temperagem e a moldagem. Depois de pronto, o chocolate é enfim embalado e destinado para os pontos de venda.

O secretário Estadual de Turismo da Bahia, Maurício Bacelar, reforça que este movimento criado a partir do turismo rural tem se tornado essencial para a manutenção da economia da região, principalmente em época de baixa temporada. Além disso, ele cita que o governo da Bahia tem trabalhado desde a criação da Estrada do Chocolate, a BA 262, em 2014, a estruturação de um produto turístico a partir da produção do tradicional doce.

“Na estrada, o visitante tem a oportunidade de conhecer a cultura baiana do cacau, que é uma cultura preservacionista. Plantamos o cacau à sombra de árvores centenárias para produzir chocolates finos apreciados em todo o mundo. Isso representa uma diversificação da oferta turística na região. Com ela, aumentamos o fluxo e também a permanência dos turistas no destino, com consequência direta na geração de emprego e renda”, afirmou.

Bacelar explica que, na baixa temporada, o perfil do público é formado por famílias do Sul e do Sudeste, em função das férias escolares no meio do ano. Mesmo assim, ele destaca que, para esse perfil, ainda é possível aproveitar as belezas naturais da região. “No inverno, as pessoas têm a oportunidade de conviverem com nosso patrimônio cultural, com nossa gastronomia e de visitarem nossas fazendas centenárias. Além disso, nosso inverno é ameno, com boas condições para as pessoas ainda frequentarem as praias”, completou.

O fomento ao turismo a partir do cacau oportunizou que outros produtos turísticos se valorizassem, ampliando as opções de roteiros na região Sul da Bahia. Entre elas, o prefeito de Ilhéus, Valderico Júnior, destaca a localidade de Rio do Engenho, uma das comunidades habitadas mais antigas do Brasil, com construções datadas da década de 1530. A chegada até o distrito se dá, de forma mais facilitada, por barco, o que valoriza a paisagem local.

O gestor ressalta que a cidade no Sul da Bahia possui uma grande diversidade para ser explorada pelo turismo. “A cidade de Brasília pertencia à capitania hereditária que Ilhéus comandava. Temos muita cultura e muitas histórias para contar que passam também pela nossa grande zona rural. Antigamente, o governador mandava perguntar se o imposto do cacau tinha sido recolhido para ele poder pagar a folha do estado. Temos que valorizar tudo isso, pois o turismo desenvolve a cidade. É uma indústria limpa”, falou.

Conforme um levantamento da Secretaria de Turismo de Ilhéus, a cidade possui um inventário de cerca de 9 mil leitos de hospedagem. O objetivo da prefeitura é fomentar os roteiros que fomentem a retenção do turista na cidade, combinando experiências também em municípios da região. A estimativa da prefeitura é de que cerca de 70% da produção seja feita por agricultores familiares.

Ainda no Rio do Engenho, a história da Bahia, a produção do cacau, a gastronomia e a literatura de Jorge Amado se misturam. Isso porque a localidade é sede do restaurante Netos de Gabriela. Como o nome indica, ele é mantido por familiares de Lourdes Maron, a cozinheira serviu de inspiração para a principal personagem do escritor baiano. Apesar disso, Carlos Alberto Maron Júnior, de 49 anos, conta que foi um dos primeiros descendentes da “dona Lourdes” a “assumir a história” da família.
“Minha avó ficou famosa por fazer quitutes para as festas dos coronéis. Sempre foi uma mulher guerreira. Mas a família sempre foi contra à fama do livro. Sempre foi escondido que ela (avó) era a inspiração da Gabriela. Mas aqui eu posso contar a verdadeira história da minha avó, para não confundirem com o livro e as novelas. Ela pode não ter subido no telhado, mas devia ter um pouquinho de molecagem. Agora a fama mesmo era do meu avô Emílio. Esse sim era um mulherengo”, brincou. Além do restaurante, situado nas margens do rio do Engenho, ele possui uma fazenda com mais de nove mil pés de cacau. No momento, toda a produção é comercializada como commodity, mas ele pretende criar, nos próximos anos, uma marca própria de chocolate fino, que também terá como nome “Netos de Gabriela”.

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