Aves de rapina, as guardiãs dos arrozais do Irga

Aves de rapina, as guardiãs dos arrozais do Irga

Falcões e gaviões são o meio mais eficiente e ambientalmente correto para afugentar pássaros que se alimentam de arroz e atacam lavouras do instituto

Por
Lucas Keske*

O arroz tem uma característica diferente dos demais grãos produzidos no Brasil, uma vez que é cultivado em terreno bastante úmido e muitas vezes inundado. Além de tornar as plantações facilmente identificáveis, manter o arroz irrigado permanentemente dificulta a germinação de plantas daninhas que competiriam pelos nutrientes do solo. A planta respira por uma estrutura chamada de aerênquima, que capta o oxigênio da atmosfera e o leva para as células das raízes, diferente dos demais grãos que respiram pelas raízes.

A técnica de plantio também acompanha outros benefícios como o controle da temperatura do solo, o controle do pH de solos ácidos e o aumento da disponibilidade de nutrientes para as plantas. Mas além de controlar as plantas que podem competir pelos nutrientes, fazer o manejo de um arrozal demanda manter animais distantes. A água dificulta o acesso de animais terrestres, mas o que fazer numa lavoura caracterizada por atrair dezenas de aves?

Desde 2019, o Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga), utiliza a falcoaria para controlar a presença de aves que se alimentam do arroz plantado nos 49 hectares da área de experimentação do instituto, em Cachoeirinha, na Região Metropolitana. O método consiste em introduzir falcões e gaviões que são predadores naturais de aves como chupins e pombas, para afugentá-los do espaço de testes. Dessa forma, a cadeia alimentar presente na natureza é mantida no instituto, fazendo da falcoaria um método muito eficiente e ecologicamente correto.

A diretora técnica do Irga, Flávia Tomita, classifica a falcoaria como “o melhor método atualmente para controle de pássaros nas lavouras" e assegura que a ideia veio do já tradicional uso de aves de rapina para controle de animais no espaço aéreo de aeroportos. “Dependendo do ataque (à lavoura), a gente não consegue colher sequer o experimento, porque eles vêm e comem tudo mesmo”, diz Flávia, apontando o prejuízo à produtividade e ao desenvolvimento da pesquisa caso os pássaros não sejam controlados.

Segundo ela, antes da falcoaria, o instituto testou alto-falantes que reproduzem sons de falcões, uso de fogos de artifício e até mesmo, "falcões falsos” que eram, na verdade, drones. “Acontece que depois de um tempo os pássaros se acostumam e voltam a comer o arroz”, complementa. 

A diretora ressalta que o Irga adoraria contratar a falcoaria para outras áreas, mas observa que a operação é bastante complexa. Tomita acentua que não se trata de chegar na plantação e “caçar passarinhos”.

Salienta que a autarquia precisa fazer a gestão do processo, buscando empresas que tenham suas documentações extremamente corretas e alinhadas com os órgãos ambientais. “Para não incorrer em problema nenhum”, ressalva. 

Toda essa complexidade e eficiência não vem a um baixo custo. Para o ano de 2023, o Irga ampliou o contrato firmado com a Charrua Falcoaria, de Canoas, pagando R$ 696 mil pelo serviço anual, dividido em 12 parcelas mensais de R$ 58 mil. Conforme o instituto e a empresa, a ampliação do contrato também contempla a operação de outros métodos para manejo de animais diferentes.

De acordo com a Charrua a maior parte dos gastos envolve o quadro de pessoal. São constituídas duas equipes de especialistas que precisam estar com os animais durante todo o dia, para que o manejo seja efetivo e para que as aves de rapina afugentem com segurança os pássaros que ameaçam as lavouras.

Delicadeza técnica para que ninguém se fira

As raças de falcões e gaviões treinadas pela equipe de falcoaria do Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga) atuam de forma a preservar as aves que perturbam o desenvolvimento da lavoura orízicola, sendo baixo o índice de captura de pássaros

O uso de miçangas nas garras das aves de rapina que fazem o “patrulhamento” das lavouras do Instituto Rio Grandense do Arroz, em Cachoeirinha, na Região Metropolitana de Porto Alegre, é uma medida de segurança para o caso de falcões e gaviões conseguirem capturar pássaros, mas sem que estes sejam feridos. Foto: Mauro Schaefer

Segundo o biólogo e falcoeiro, Julian Stocker, sócio da Charrua Falcoaria, no campo de provas do Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga) são usados três métodos diferentes de afugentamento das aves, e três raças de rapinantes, entre falcões e gaviões.

O primeiro método consiste na liberação para voo do Falcão-Peregrino (Falco peregrinus), animal nativo do Brasil que ostenta o título de “ave mais rápida do mundo”, já tendo sido registrados exemplares que alcançavam os 320 quilômetros por hora em voo.

A ideia por trás de sua atuação é que, por voar muito rápido e muito alto (cerca de 150 metros de altura), sua presença é facilmente identificada pelas presas, que optam por não se aproximar da região de testes. 

Já o Falcão de Coleira (Falco femoralis), ave de apenas 460 gramas, em média, tem uma característica única de voar em baixa altitude e perseguir suas presas por longas distâncias. Essa habilidade faz com que ele vá atrás das aves até que saiam da área do instituto, sendo geralmente o segundo a ser lançado ao voo para intimidar as presas que permanecerem no espaço mesmo depois da intimidação causada pelo primeiro falcão. 

Por fim, o método mais primoroso e diferente dos anteriores envolve o Gavião Asa-de-Telha (Parabuteo unicinctus), o maior dos animais empregados. Enquanto um dos falcoeiros dirige o carro, outro leva o gavião pousado em suas mãos também dentro do carro, soltando-o no momento em que identificam animais que necessitem ser afugentados.

De acordo com Julian, “a característica do gavião é não gastar energia desnecessária”, ou seja, a ave tende a esperar a identificação da presa ainda em repouso, e só voa em busca de uma presa já escolhida. Desta forma, o método chamado de “Carhawking”(do inglês, car significa carro e hawking pode ser traduzido como caça por meio de falcão), torna esse ponto de espera para a caça "móvel" ao circular com o carro por volta das plantações.

O tamanho do gavião, aliado ao efeito surpresa de começar seu voo a partir de um carro em movimento, causam grande estresse nas aves que tentam se aproximar do arroz, fazendo com que optem por se distanciar das lavouras.

Foto: Mauro Schaefer

Ainda de acordo com o falcoeiro Julian, o principal objetivo das aves é afugentar os chupins e pombas que se alimentam das plantações de arroz, e não a caça ou mesmo a captura dessas aves. Para tanto, as rapinantes usam peças de miçanga em suas unhas, para que, mesmo que venham a pegar alguma presa, essa não acabe ferida nem por acidente.

Ele afirma que a taxa de captura dos animais é “baixíssima”, mas mesmo que rara, quando ocorre, as aves de rapina pousam no chão e esperam que os falcoeiros “troquem” a presa por carne de codorna. As presas são soltam posteriormente em local apropriado.

Essa troca por carne acontece também quando do retorno das aves de seu voo de afugentamento, como recompensa. As aves de rapina são exclusivamente carnívoras e absorvem todos os nutrientes da carne.

Por causa da altura de voo e a grande distância da área de experimentação coberta pela falcoaria, os animais utilizam um “localizador de telemetria”, que funciona por meio de radiofrequência e aponta aos falcoeiros em que direção a ave está. O alcance, afirma Julian, gira em torno de 15 quilômetros.

Falcões e gaviões podem custar até R$ 10 mil 

Aves devem ser adquiridas apenas em criatórios regulamentados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e necessitam de manejo adequado para que não briguem entre si

A equipe de falcoeiros coloca capacetes de couro para que as aves de rapina descansem adequadamente no solo e não sejam atraídas por outras aves em voo. Os equipamentos são feitos sob medida e permitem a permitem a perfeita respiração dos animais, sendo presos com tiras elásticas que não apertam a cabeça da ave. Foto: Mauro Schaefer

Trabalhar com falcoaria não consiste apenas em comprar as aves e liberá-las para voo em sua propriedade. Até mesmo porque as rapinantes podem acabar brigando entre si se seu manejo não for realizado de forma correta. “A cadeia alimentar funciona mesmo entre elas”, alerta o falcoeiro e biólogo Julian Stocker.

Os animais, que podem custar até R$10 mil, são comprados em criatórios regulamentados pelo Ibama e usam anilhas de identificação nas patas. Todos os dias, no início da manhã e ao fim da tarde, são empregados três ou quatro animais para os voos, havendo um rodízio de nove exemplares na sede do Irga.

Voá-los nestes horários ajuda a evitar o sofrimento que o calor causa às aves de rapina, mas se grupos de chupins apareceram no meio do dia, “vamos ter que soltá-los assim mesmo”, garante Julian. 

Como os animais repousam próximos um do outro e ao ar livre, enquanto algum dos animais voa, os falcoeiros podem colocar “capacetes” de couro nos demais animais, que apenas obstruem sua visão, para que não tentem voar ao verem outras aves em voo.

Os capacetes são feitos sob medida, permitem a livre respiração dos animais e são presos com tiras de elástico que não apertam suas cabeças.

Enquanto não estão voando, ou repousando à sombra de uma árvore, as aves dormem em uma estrutura adequada que se assemelha a baias para animais domesticados. É nessa mesma sede que elas passam pelos cuidados e exames diários para monitorar sua saúde, realizados pela equipe, que condensa biólogos, falcoeiros e veterinários.

Chupim ou papa-arroz

Foto: Fernando Calmon / Shutterstock

No Rio Grande do Sul, o chupim (que também pode ser chamado de papa-arroz) é uma espécie encontrada com grande frequência, em razão da tradição do Estado na cultura. Se em bando, podem causar prejuízo significativos, como ocorreu em São Paulo em 2014, com a destruição de 200 hectares semeados com o grão no município de Tarumã, no Vale do Paranapanema.

Pombas-de-Bando

Foto: WildMedia / Shutterstock

A Pomba-de-bando, como diz o nome, costuma ser um animal gregário e, por isso, pode atacar a lavoura de arroz às centenas. Além de comer os grãos de arroz, e também de soja, quando esta é a plantação escolhida, as pombas provocam danos às plantas, como a debulha, causada pelo bater de suas asas. Seu efeito é tão devastador, que vem tendo atenção do Ministério da Agricultura.

*Sob orientação de Nereida Vergara

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895