Lavouras de Porto Alegre foram 60% atingidas
Avaliações realizadas até o momento pela Emater/RS-Ascar indicam também a ocorrência de sérios prejuízos às famílias de pescadores das colônias Z4 e Z5, estabelecidas nos bairros da zona sul da Capital
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Porto Alegre está entre as capitais do Brasil com maior zona rural consolidada geograficamente, superando os 7 mil hectares, de acordo com Censo Agropecuário realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2017. O desastre climático que se iniciou no final de abril, e tomou proporções gigantescas ao longo de maio, não poupou os agricultores porto-alegrenses com plantios no extremo sul da cidade. A produção de hortaliças, em especial as folhosas (como as alfaces e couves), a fruticultura e a piscicultura estão entre as atividades da agricultura familiar mais atingidas pelas chuvas e inundações, perdas que incluem também a morte de animais de criação.
De acordo com dados da Emater-RS/Ascar, mais de 60% da agropecuária da Capital foi comprometida pelo fenômeno climático. “As perdas, agora, são muito maiores. Na época, era em torno de 60%. Agora, muitos têm cem por cento de perda”, diz o chefe do escritório da Emater-RS em Porto Alegre, Luís Paulo Vieira Ramos. Ele compara a situação atual com aquela verificada depois do excesso de chuvas ocorrido em setembro e novembro do ano passado. Segundo Ramos, o que não tem faltado à Emater são relatos de lavouras completamente destruídas e produção com previsão de interrupção por meses na região.
Os problemas afetam inclusive propriedades localizadas em terrenos mais altos e protegidas por mata nativa. Na área do Extremo Sul, por exemplo, onde está concentrada mais de 80% da atividade agrícola de Porto Alegre, uma produtora de banana, maracujá e hortaliças nada terá a oferecer antes de três semanas, de acordo com o gestor. Os prejuízos afetam inclusive os tubérculos. “Quem não conseguiu colher batatas e aipim, e congelar, perdeu”, afirma Ramos.
Produtores maiores, de áreas próximas ao Arroio Manecão e ao Arroio Lami, tiveram lavouras inundadas. Um dos casos mais dramáticos ocorreu em região geograficamente oposta, às margens da BR-290, nas proximidades do acesso a Cachoeirinha, onde uma plantação de arroz e maquinário como tratores e colheitadeiras foram totalmente perdidos. Na mesma fazenda, cerca de meia centena de bovinos morreram afogados. “Até caminhão ficou debaixo d’água ali”, diz Ramos.
Em Belém Novo, pelo menos 80% da área de lavoura de soja foram arrasados. “Se conseguir colher alguma coisa, o grão não vai prestar”, prevê. Porto Alegre, que tem cerca de 500 hectares de soja cultivados, conseguiu desempenhos de colheita superiores ao restante do Rio Grande do Sul nas duas safras que o Estado semeou sob estiagem.
Em todo o Rio Grande do Sul, a agricultura sofre o impacto negativo da longa temporada chuvosa e de alagamentos. Mesmo em ambientes protegidos (exemplo das estufas, o desenvolvimento do plantio está seriamente prejudicado pela elevada umidade e a baixa luminosidade. “Com toda essa umidade no solo, mais os dias sombrios, a planta acaba adoecendo. A perda não acontece no momento, mas, três ou quatro dias depois ela tomba”, explica Luiz Ramos. Outro problema é a impossibilidade de realizar o manejo das áreas para a reconstrução de canteiros na maior parte do período. Os agricultores estão verificando perdas de solo, nutrientes e matéria orgânica.
O presidente da Associação dos Produtores da Rede Agroecológica Metropolitana (RAMA), Eduardo Gigante, acrescenta, ao conjunto de adversidades, problemas decorrentes do desequilíbrio entre oferta e demanda. “Ou a pessoa tem mercado, mas não tem produto, como é a situação das hortaliças, ou tem o produto, mas não tem onde ou para quem vender”, analisa.
O próprio Gigante enfrenta a dificuldade comercial, sem encontrar colocação para boa parte das 2,2 mil dúzias de ovos que disponibiliza mensalmente. Para ele, a diminuição da demanda por alimentos reflete a debandada de uma parcela da população de Porto Alegre para outras cidade, para escapar de problemas como falta de água e energia elétrica. Na Central de Abastecimento (Ceasa) do Rio Grande do Sul, funcionando temporariamente em Gravataí, problemas logísticos ainda dificultam a chegada de alimentos ao local.
Perda total nos cultivos de alimentos orgânicos
Desabastecimento deverá afetar as feiras especializadas, distribuídas pelos bairros de Porto Alegre, e oferta deste tipo produtos nas gôndolas das redes de supermercados tanto na Capital como em outros municípios
Estabelecido em uma área de 12 hectares, no bairro Lami, no Extremo Sul de Porto Alegre, o produtor de alimentos orgânico Vasco Machado, 58 anos, considera-se um privilegiado. Ainda que tenha previsão de renda muito reduzida num período que pode chegar a 60 dias, ele comemora já ter sido possível retomar a atividade agrícola que desenvolve na Granja Santantonio, desde o início das chuvas no começo do mês. “Vizinhos meus sequer conseguem entrar em suas áreas, ainda inundadas”, afirma, salientando a localização da sua propriedade, construída em terreno mais elevado.
Na granja, foram as chuvas e a falta de luminosidade, e não a enchente, que provocaram a perda de cerca de 250 quilos de batata e das lavouras de couve e de berinjela. A catástrofe climática interrompeu ainda a principal fonte de rendimento de Machado, o turismo rural, com o qual chegou a atrair, por ano, “nos bons tempos”, entre três mil e quatro mil estudantes de todos os níveis de ensino, para atividades pedagógicas. Na propriedade, reside a família, que soma sete pessoas, e trabalham três funcionários. Outros dois colaboradores atuam com Machado na Feira Ecológica do Bom Fim, que se realiza todos os sábados na Avenida José Bonifácio, ao lado do Parque farroupilha. Parte da produção da família também é destinada ao Programa de Aquisição de Alimento, que atende em grande parte a merenda escolar.
As mudas recém plantadas na Granja Santantonio devem oferecer seus primeiros frutos em pouco mais de trinta dias, no caso da rúcula. Em 45 dias, a expectativa é voltar a colher alface. Couves, em 60 dias, exceto a variedade de Bruxelas, que demanda oito meses de cultivo. Beterrabas estarão disponíveis em três meses. A granja produz ainda noz-pecã e limões das variedades taiti e siciliano, que não sofreram danos com o alto volume de chuvas.
Na avaliação do presidente da Associação dos Produtores da Rede Agroecológica Metropolitana (RAMA), Eduardo Gigante, as lavouras orgânicas da região sofreram perdas “muito próximas a 100%”. “Esse pessoal não tem nada. Tem produtores estimando ficar 45 dias fora das feiras, por não ter o que ofertar. As pessoas dependem da sua produção, dependem da sua comercialização para se manter. É um baque violento”, complementa Gigante, destacando a destruição de lavouras orgânicas em outros municípios, como Eldorado do Sul, que teve quase totalidade do território submerso.
Machado acredita que poderia ter avisado seus vizinhos sobre a intensidade das chuvas. O produtor diz haver percebido mudanças no comportamento da fauna da Granja Santantonio, antes das fortes precipitações, principalmente com formigas e pássaros. “Tem formigas aqui, claro, mas elas vivem ali, e não atacam a lavoura”, afirma, apontando para a mata nativa que cerca a área plantada. “Nos dias anteriores à chuva, elas começaram a aparecer nas hortaliças. Eu nem sabia o que fazer, pois nunca enfrentei isso”, relata. Para o agricultor, o aparecimento do inseto estaria associado à necessidade de acumular maior volume de alimento, ao pressentir a aproximação da intempérie. Entre os pássaros, Machado sentiu falta de uma espécie de cerca de meio metro de comprimento e plumagem predominantemente marrom, típico das matas. “O aracuã sumiu”, diz.
Pouco mais de uma semana depois da reportagem do Correio do Povo visitar a Granja Santantonio e conversar com Vasco Machado, chuvas fortes voltaram a cair sobre Porto Alegre. Na noite do dia 23 de maio, em mensagem por WhatsApp, o produtor foi breve: “Agora, perdi tudo que havia replantado”.
Colônia de pescadores contabiliza prejuízos
Fernando Silva de Deus e um dos trabalhadores da pesca que perdeu tudo com a enchente, desde os apetrechos para a atividade até dois barcos, um deles de nove metros e avaliado em R$ 15 mil, o qual tem esperança de recuperar
Cerca de 250 famílias das Colônias de Pescadores Z4 e Z5, que compreendem, respectivamente, os bairros Lami, Belém Novo e Arquipélago, tiveram suas residências invadidas pela enchente. As águas também levaram equipamentos de trabalho, desde redes de pesca a freezers e, estimam-se, pelo menos cem barcos. “Não sabemos ainda o número exato, pois os pescadores se espalharam. Tem gente em Águas Claras, tem gente em várias cidades do Litoral”, explica o chefe do escritório da Emater-RS em Porto Alegre, Luís Paulo Vieira Ramos.
“A maioria dos barcos é de chapa metálica. São resistentes, mas numa corrente de água muito forte, acabam afundando e desaparecendo. O canal do Jacuí produz uma correnteza muito forte na Ilha da Pintada”, descreve o extensionista. A água avançou ainda sobre o entreposto da Colônia Z5, na Ilha da Pintada. Ramos calcula um prazo provavelmente superior a dois meses para que a atividade possa ser reiniciada. Um dos pescadores da Z5 com patrimônio destruído pela enchente é Fernando Silva de Deus, 40 anos, que não se afastou da região depois de ter a casa arrasada pelas águas do Rio Jacuí. Silva e a família, a mulher e dois filhos, estão acampados às margens da BR-116, no acesso à ilha junto à rodovia.
Além da residência, o pescador perdeu dois barcos e todos seus apetrechos de pesca. “Perdi tudo. Só de material para fazer novas redes foram uns R$ 5 mil”, calcula. Silva tem esperança de recuperar o barco maior, de nove metros, orçado em cerca de R$ 15 mil. Levada pela correnteza, a embarcação naufragou nas proximidades da Ponte da Ilha, uma travessia sobre um braço do Jacuí em uma das principais vias da Ilha da Pintada, e estaria preso à estrutura da construção. “Ainda bem que não afundou”, diz.
Além da necessidade de retorno e de restabelecimento das famílias, é preciso esperar que o Lago Guaíba e a Lagoa dos Patos fiquem livres de detritos, lama e que a correnteza volte ao normal. Para Silva, outra dificuldade serão as piranhas que se tornaram abundantes no Guaíba antes mesmo da catástrofe climática, causando grandes prejuízos aos pescadores. De acordo com Luiz Ramos, cada família responde por uma produção que varia entre quinhentos quilos e duas toneladas de pescado por mês. “No total, dá em entre 500 toneladas e 700 toneladas”, diz.