Risco em alta na indústria a céu aberto
Produtores rurais gaúchos, acossados por eventos climáticos sucessivos, têm implantado lavouras nos últimos ciclos sem a contratação de seguro, em razão do desequilíbrio entre o preço das apólices e o valor das indenizações
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O endividamento que sufoca milhares de produtores rurais gaúchos tem nas suas raízes a insuficiência de instrumentos de mitigação de risco que pudessem resguardar as perdas. Nessa indústria a céu aberto, a sequência de estiagens e a ausência de seguro agrícola nas lavouras levou a uma série de anos de vacas magras, estrangulando as finanças dos agricultores e forçando-os a fazer safras por conta e risco, pela inviabilidade da relação entre o preço do seguro e o valor da indenização. No novo ano agrícola, além dos passivos já consolidados e que mobilizam os produtores a buscar anistia e apoio governamental, a vulnerabilidade atrelada aos caprichos do clima está mais presente e impulsionada ainda pelos prognósticos de ocorrência de La Niña, que deve proporcionar menos chuvas para as culturas de verão.
No Plano Safra 2024/2025, o ministro da Agricultura e Pecuária (Mapa), Carlos Fávaro, anunciou aumento de 174% nos recursos destinados ao seguro rural para o Rio Grande do Sul, passando de R$ 134,4 milhões, no ciclo anterior, para R$ 368,3 milhões – considerando alta de 17% dos recursos ordinários do Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR), que ficou em R$ 157,4 milhões, e o acréscimo de R$ 210,9 milhões em recursos extraordinários. Fávaro projetou cobertura ampliada de 12 mil para 26 mil produtores e de 669 mil para 1,2 milhão de hectares. Na prática, as preocupações permanecem, não apenas para o Estado, conforme advertiu a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) da Câmara dos Deputados.
“Estamos endividados porque não temos seguro cobrindo todas as operações e não temos seguro que garanta renda ao produtor”, diz o presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetag-RS), Carlos Joel da Silva. Para o segmento familiar, Joel defende que o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) ainda é o melhor sistema, com cobertura para perdas e renda, mas ressalva que mudanças feitas no Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro) trouxeram prejuízos. Alguns pontos já foram corrigidos, e outros continuam no foco da Fetag-RS. Ele entende que o campo gaúcho se tornou delicado para companhias. “Como viemos de diversas estiagens, as seguradoras estão fugindo do Rio Grande do Sul. Além disso, como somos o último Estado a buscar o crédito, quando não tem recurso para subvenções para atender a todos os produtores, são os nossos daqui que acabam sofrendo”, aponta.
As perdas contínuas por fatores climáticos e as dificuldades de acessar o seguro têm abatido os produtores rurais. “O pessoal está muito desanimado e vai ficar ainda mais daqui para a frente”, constata o coordenador da Comissão de Trigo e Cereais de Inverno da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Hamilton Jardim. O cereal de inverno já está em fase final de plantio, tendo no retrovisor os prejuízos do excesso de chuva no ano passado. Para este ano, pouco mudou. “Além do aumento das alíquotas das apólices, o grande problema para cultivos de inverno é a produtividade garantida que é muito baixa, 65% da produtividade esperada”, diz.
Como exemplo, Jardim afirma que, em Palmeira das Missões, a produtividade esperada para o trigo é de 42 sacas, deixando a garantia na faixa de 28 sacas. “E não cobre a qualidade do trigo, que foi o grande problema na safra passada com o excesso de chuva”, lembra. O coordenador acredita que menos de 50% das lavouras de trigo estão seguradas no Estado e que a subvenção federal é insuficiente. “A ausência de mecanismos de mitigação é um dos motivos que levaram à criação de uma bolha de endividamento”, afirma Jardim. A equação inclui três ciclos frustrados, sendo a temporada 2021/2022 com os custos de produção mais caros da história, sem seguro e com commodities em baixa.
No dia 4, depois do anúncio do Plano Safra atual, o vice-presidente da Farsul, Elmar Konrad, também coordenador da Comissão de Política Agrícola, Seguro e Crédito Rural, relatou a milhares de produtores envolvidos no movimento SOS Agro RS o caminho inóspito da produção até a presente crise a partir da primeira da série de estiagens que castigou o RS, na safra 2019-2020. “Na época, a referência de cobertura era de 35, 37 e 40 sacos de soja por hectare. Colhemos em média 31 sacos e tivemos indenização parcial”, lembra.
O desgosto se repetiu no ciclo 2021-2022, reduzindo a colheita à média de 24 sacas no Estado. “As seguradoras estavam com níveis normais de cobertura. Obviamente, isso deu um baque muito grande no seguro e afetou o resseguro, que saiu RS”, afirma. As consequências foram aumento de custo das apólices – de 8% a 9% para de 14% a 17% – e redução no nível de cobertura, que era de 32%, 35% e 40% para 23%, 25% e 29% da produtividade esperada.
“Este ano, estamos muito vulneráveis. Não vamos ter safra com seguro, nem no seguro agrícola nem no Proagro”, avaliou. Em reunião com o ministro Fávaro, a Farsul foi taxativa sobre o aumento da subvenção. "Não adianta botar valor na subvenção se não botar parâmetro no nível de cobertura de tantos sacos por hectare”, alertou. O Plano Safra trouxe subsídio para o Rio Grande do Sul de 30% para municípios em situação de emergência e de 40% para os em calamidade. “Porém, não mexeu no nível de cobertura. Então é colocar milhões de reais fora porque não vai ajudar ninguém”, destacou. Outro ponto importante é que agora as alíquotas são calculadas por município e por tipo de solo. “Então, realmente, em termos de seguro e Proagro, este plano deixou tudo a desejar”, conclui. O setor rural gaúcho agora está na expectativa de o governo federal editar uma Medida Provisória até o final do mês para repactuação das dívidas dos produtores rurais.
Ainda em busca das correções no Proagro
Entidades representativas da agricultura familiar, Fetag/RS e Fetraf/RS criticam e tentam reverter resoluções do Conselho Monetário Nacional que mudaram o acesso do pequeno produtor a sua principal alternativa de seguro
Principal ferramenta de mitigação de risco nas operações de crédito, o Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro) esteve no foco das atenções da agricultura familiar nos últimos meses por conta de mudanças aprovadas em abril pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). A Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetag-RS) rechaçou as alterações e trabalhou para modificar resoluções que entendia tornar o programa impraticável. “O programa não foi inviabilizado, mas temos questões que ainda precisamos adequar, que na nossa visão não ficaram corretos como, por exemplo, a vinculação do CAR (Cadastro Ambiental Rural) ao Proagro”, diz o assessor de Política Agrícola da Fetag-RS, Kaliton Prestes.
Entre as vitórias da Fetag-RS na discussão das normas, o Banco Central projetava alíquotas de até 18% para milho e soja dentro do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). “Através de negociação conseguimos fazer com esse teto fosse de 10%”, exemplifica Prestes. A entidade agora busca recuperar danos em relação à garantia de renda mínima (GRM) do Proagro Mais. “Os limites eram de R$ 40 mil para culturas permanentes e de R$ 22 mil para culturas temporárias e foi reduzido para até R$ 9 mil. Isso foi um prejuízo também”, analisa.
Outra questão levantada por Prestes envolve as janelas de risco do Zoneamento Agrícola de Risco Climático (Zarc), um instrumento de política agrícola e gestão de riscos na agricultura. Atualmente, o agricultor que plantar em área com janela de risco de 20% terá 100% de indenização em caso de perdas. A indenização cairá para 25% se a cultura for implantada em janela de risco de 30%. “Se fizer o plantio em janela de risco de 40%, a indenização já cai 50%. Isso é um prejuízo muito grande, pois na prática muitas vezes o agricultor não consegue fazer o plantio naquela data específica por chover de mais ou de menos. Então, estamos buscando essa flexibilização”, explica Prestes.
Para o coordenador-geral da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do RS (Fetraf-RS), Douglas Cenci, o Proagro é importante para evitar o endividamento dos produtores familiares, ainda mais sob influência direta das mudanças climáticas que causaram perdas em todo o campo gaúcho. “A mudança que permite que os produtores de feijão, arroz, olericultura e culturas perenes possam ser dispensados de cumprir os seis comunicados em cinco anos, corrige parte do equívoco cometido em 2022, quando mudou o formato de enquadramento, isso é muito positivo”, analisa.
No entanto, Cenci alerta que a definição de alíquotas por território de amostragem impõe um custo mais alto em diversas regiões. “Mas, diante da possibilidade de extinção do programa público, creio que foi uma saída ainda adequada, perdemos os dedos para salvar o braço”, diz.
Em carta aberta sobre o Plano Safra 2024/2025, Cenci defendeu que as mudanças feitas no plano agrícola federal desfavoreceram a produção diversa de alimentos e precisam ser revistas. Junto a isso, é preciso aprimorar e proporcionar que o programa cumpra com sua função social. As ações que o governo tem feito são de desmantelamento do programa.
Companhias se retraem diante das ameaças
Seguradoras tiveram crescimento de 586% entre 2013 e 2023, mas ritmo deve diminuir em razão de problemas climáticos
A sequência de estiagens que dizimou 30 milhões de toneladas de grãos da colheita no Rio Grande do Sul ampliou os riscos na produção rural e reduziu o apetite das companhias seguradoras na oferta de cobertura para perdas agrícolas. De 2013 a 2023, o setor cresceu 586%, mas o comportamento do tempo nos últimos anos deve reduzir o ritmo. “O grande desafio é não concentrar o risco”, justifica o vice-presidente da comissão rural da Federação Nacional de Seguros Gerais (FenSeg), Daniel Nascimento.
No Estado, a relação entre o prêmio recebido pelas operadoras e o custo dos sinistros tem se demonstrado desfavorável às empresas. Algumas companhias foram forçadas a refazer seus planejamentos, enquanto outras optaram por sair do mercado. “Se pegar os últimos quatro anos até março de 2024, somente no Rio Grande do Sul a gente tem relação entre o que recebe de prêmio e paga de indenização de 126%”, revela Nascimento.
O mercado gaúcho se mostrou proveitoso por anos, até a recorrência de eventos climáticos extremos. Entre 2013 e 2019, as seguradoras registraram crescimento de arrecadação variando dois dígitos anualmente em nove dos 11 anos comparados. Em 2020, os números praticamente se igualaram, com R$ 1,34 bilhão arrecadados e R$ 1, 33 pagos. Em 2022, as companhias sofreram prejuízo ao redor de R$ 700 milhões, tendo de indenizar produtores rurais em R$ 3,23 bilhões. Foi o maior tombo da série histórica, com variação de 386% sobre as indenizações do ano anterior.
Em 2023, o valor indenizado foi o segundo maior da série, com R$ 1,40 bilhão, frente arrecadação de R$ 2,37 bilhão. Os números de 2024 ainda não contemplam maio, o mês da catástrofe gaúcha. Até abril, as seguradoras haviam arrecadado R$ 4,30 bilhões e indenizado R$ 166 milhões. Para o novo ano agrícola, os agricultores podem ver se repetir os desafios das variações climáticas a partir de prognósticos que apontam para a chegada de La Niña, caracterizado pela baixa e irregular distribuição das chuvas, o que afeta as culturas de verão. “Infelizmente, será um ano muito difícil, com margens mais apertadas para o produtor, não só recorrentes às perdas climáticas”, reforça o vice-presidente da FenSeg.
O executivo mantém diálogo com o setor produtivo gaúchos e já sabe que uma parcela dos agricultores fará safras descoberto de seguro. “O mercado vai continuar atuando, mesmo retraído e com elevação de risco”, adianta. As seguradoras esperam que o aumento de 174% nos recursos de seguro rural anunciados no Plano Safra 2024/2025 mobilizem o produtor gaúcho. O Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) informou que o montante passou de R$ 134,4 milhões, no ciclo 2023/2024, para R$ 368,3 milhões. Os recursos ordinários do Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR) foram de R$ 134,4 milhões para R$ 157,4 milhões.
Família Feijó acumula perdas não indenizadas
Instalado em Barra do Ribeiro, o agricultor João Miguel tem um histórico de 35 anos durante os quais tentou usar o seguro rural, sem sucesso e com prejuízos cumulativos, e ainda hoje a propriedade luta para se reerguer
Uma sucessão de frustrações ao longo de décadas deixou marcas profundas na família Feijó, de Barra do Ribeiro. Para continuar produzindo, pai e filho precisaram buscar recursos fora do sistema financeiro e estão à margem do seguro rural. O patriarca, João Miguel Feijó é filho e neto de agricultores. Seu filho, Camilo Pereira Feijó, técnico em zootecnia, é a quarta geração nas lides rurais e tem em mente as dificuldades enfrentadas pelo pai.
O histórico de João Miguel remonta à safra 1988/1989, primeiro em Barra do Ribeiro. “Um dia antes de colher, com maquinário todo pronto, deu uma chuva de pedra”, conta o filho Camilo. João Miguel acionou a seguradora, foi orientado a colher o que restara e fazer uma média. Ao final, teve a indenização negada. Na temporada seguinte, 1989-1990, João Miguel recebeu proposta para ir plantar em Herval, na Zona Sul do Estado. No primeiro ano, perdeu a lavoura para as cheias. No segundo, veio a seca. Em ambas, o mesmo roteiro: laudo de vistoria feito e indenização rejeitada, levando o agricultor a judicializar a questão.
“O pai pagou advogado para fazer a defesa, mas ele sumiu, e o processo correu à revelia, levando meu pai a perder a ação contra o banco. O maquinário dele começou a ser penhorado”, conta Camilo. A história de João Miguel continuou em outra propriedade, em Esteio. Na safra de 1996-1997, um temporal de granizo acamou a plantação e a indenização do seguro foi negada novamente. “Depois desse ano, foi só ladeira abaixo, porque já tinha perdido quatro lavouras. Como já vinha de outros anos perdendo, com ação na Justiça, maquinário penhorado, vinha só empurrando com a barriga”, lamenta o filho.
João Miguel se mudou para Barra do Ribeiro, onde a família tem um sítio, e arriscou-se novamente na safra 1997-1998. Desta vez, teve colheita cheia, mas suas máquinas agrícolas foram a leilão. Foi a pá de cal. Levando-o a trocar a atividade rural por uma oficina mecânica, onde trabalhou por dois anos. Ele ainda trabalharia em fazendas da região por mais de 10 anos e retornaria ao serviço mecânico. Nessa época, Camilo se formava técnico em zootecnia e passou uma temporada trabalhando pelo interior do Estado. Durante a pandemia, o jovem retornou a Barra do Ribeiro e trabalhou como empregado.
“Um dia sentei com o pai e falei que não ia mais trabalhar de carteira assinada, queria fazer outra coisa, ter meu próprio negócio”, lembra. No sítio, a família cultivava milho para silagem e grão. “Quando eu chegava da firma no fim da tarde, pegava trator e ia preparar a terra”, recorda Camilo. O jovem convenceu o pai de que estava vantajoso investir na soja. Pai e filho arrendaram uma área de 28 hectares e plantaram no ciclo 2022/2023. A estiagem destruiu a produção e novamente o seguro foi acionado. “Eu tinha financiado R$ 84 mil no banco, mas me indenizaram apenas R$ 10 mil, dividindo o restante em parcelas”, conta. Para aderir à renegociação da dívida, precisou dar uma entrada de R$ 8 mil, pagos este ano.
“Para dar a entrada, vendi um trator e ficamos sem dinheiro para a lavoura deste ano. Foi aí que descobri que poderíamos financiar através do Engenho Garcia (empresa de arroz no município), pegando dinheiro e entregando produto”, conta Camilo. A empresa cobrou taxa de juro similar à do mercado, e os Feijó semearam soja com expectativa de produzir de 40 a 45 sacas por hectare. Com as enxurradas de maio, colheram 15. Na lavoura de arroz, esperavam mil sacas, mas apenas 90 se salvaram. “Foi frustrante, dá uma dor no coração, colher uma lavoura que não rendia”. Apesar de magra, a colheita rendeu o mínimo para pagar o engenho. “Com empresas já estou conseguindo renegociar, mas a maior preocupação é com o banco, por ficar negativado e não conseguir mais crédito”, afirma Camilo.
Os Feijó estão fora do seguro rural e do sistema financeiro. “Não vejo como vantajoso se o seguro rural seguir neste mesmo rumo. Tem que fazer seguro que dê garantia de que tu vais pagar e receber de volta quando precisar. O produtor está sempre arriscando, botando para perder, mas ele vive de esperança e não dá para perdê-la”, diz Camilo, revelando que está analisando como se enquadrar no Pronaf para conseguir mais prazo na dívida que vence em 2026.