Resumo da matéria:
- Saneamento em números: veja a cobertura dos serviços
- O investimento em saneamento básico na Capital
- Situação das estações de tratamento após as enchentes
- Expectativas após concessão do Dmae
- Situação no RS é ainda mais desafiadora
Porto Alegre ainda enfrenta desafios para cumprir as metas do Marco Legal do Saneamento, que prevê a universalização dos serviços de água e esgoto até 2033. O esgotamento sanitário é o principal entrave na capital gaúcha, onde a cobertura limitada e as falhas na coleta e no tratamento de esgoto, serviços garantidos pela Constituição como direito, impõem a milhares de moradores uma rotina de cheiros fortes, risco de doenças e apreensão a cada chuva intensa.
De acordo com o Instituto Trata Brasil, o índice de tratamento de esgoto em Porto Alegre caiu nos últimos anos: passou de 51,6% em 2019 para 42,66% em 2023, afastando a cidade da meta, que prevê 90% de cobertura até 2033. O relatório, divulgado em 2025, reúne dados de 2019 a 2023 do Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico (Sinisa), alimentado pelos operadores locais.
Em relação à redução do índice, o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) afirma que não houve falhas operacionais nas estações de tratamento que pudessem justificar a queda nesse período e, por isso, trabalha com o dado de cerca de 52% de cobertura.
Quem enfrenta esse problema há décadas, especialmente nas áreas mais afastadas da cidade, aguarda a expansão dos serviços de saneamento e melhoria nas condições de vida. “Todos os anos lidamos com a dengue, o cheiro horrível e as enxurradas. Quando chove muito, o lixo sobe”, relata Saul Pinto, 65 anos, morador da Vila Pinto, no bairro Bom Jesus, onde vive há 40 anos.
As casas, erguidas de forma precária, dividem espaço com córregos que recebem esgoto sem tratamento. Nas margens, resíduos de toda ordem se acumulam, como garrafas plásticas, sacolas e restos de construção.
“O investimento insuficiente por parte do poder público infelizmente se soma à falta de educação ambiental da população”, observa Luiz Henrique de Lima, um dos líderes do Centro de Educação Ambiental da Bom Jesus.
Saneamento em números: cobertura, metas e desafios
Além do tratamento, Porto Alegre enfrenta dificuldades na coleta de esgoto. Apesar de a cobertura atingir 91,76%, segundo o Trata Brasil, a administração municipal considera o serviço um dos maiores desafios de infraestrutura urbana.
Dos sistemas existentes, 72% utilizam o separador absoluto, em que as redes de esgoto e de drenagem pluvial são independentes — modelo considerado ideal para a universalização. Os 19% restantes ainda operam no sistema misto, no qual esgoto e água da chuva compartilham a mesma tubulação, aumentando o risco de extravasamentos durante chuvas intensas.
O Dmae adota o primeiro modelo como referência para o atendimento efetivo do esgotamento sanitário e aponta que o principal gargalo está na infraestrutura de coleta. Segundo o diretor-geral da autarquia, Vicente Perrone, há um desafio para conduzir o esgoto até as estações de tratamento, especialmente em áreas antigas e elevadas, como o Centro e os bairros mais altos.
“Esse volume de esgoto não chega às estações. O que falta são redes coletoras e separadores absolutos. É preciso instalar novas redes nessas regiões e separar a água da chuva do esgoto cloacal, para que o sistema possa conduzir o material até as estações de bombeamento e, depois, às ETEs”, explica.
Já o abastecimento de água está praticamente universalizado, com índice de 100% entre 2019 e 2023, registrando apenas leve variação para 99,98% em 2022.
Problemas de habitação e baixo investimento dificultam avanço
O engenheiro sanitarista Fernando Magalhães, pesquisador do Núcleo de Estudos em Saneamento Ambiental (Nesa) da UFRGS, destaca que, para compreender o cenário atual e projetar o futuro do saneamento em Porto Alegre, é fundamental analisar os investimentos no setor. Ele aponta ainda que a falta de integração entre saneamento e planejamento habitacional é um dos principais desafios.
“A infraestrutura de saneamento está sempre correndo atrás desse crescimento desordenado. É uma dificuldade porque se trata de uma questão social muito grande, mas, se a gente não tocar nisso de forma séria, vamos estar sempre correndo atrás, sem avançar”.
O Dmae reconhece que o déficit habitacional é um desafio para o saneamento. A autarquia ressalta atenção especial para regiões como o Extremo Sul e Zona Norte da cidade que apresentaram crescimento desordenado, onde a infraestrutura de esgoto e drenagem não conseguiu acompanhar a expansão urbana. Além disso, há preocupação com moradores que vivem em áreas consolidadas, mas não regularizadas, como sobre diques ou terrenos com risco geológico.
Entre 2019 e 2023, Porto Alegre investiu em média R$ 72,12 por habitante ao ano em saneamento, valor inferior não só à média nacional (R$ 127,00), como também à média das capitais brasileiras (R$ 130,05). O contraste é ainda maior quando comparado aos 20 municípios mais bem colocados no Ranking do Saneamento 2025, que aplicam, em média, R$ 176,39 por habitante ao ano.
Além de estar abaixo em praticamente todas as comparações, o investimento da capital gaúcha fica muito distante do necessário para universalizar os serviços até 2033, estimado em R$ 223,82 por habitante/ano pelo Instituto Trata Brasil, com base em dados do Sinisa.
Outro problema apontado pelo relatório é a perda na distribuição de água. Em 2023, Porto Alegre desperdiçou 28,74% da água tratada antes de chegar às torneiras. Embora o índice tenha melhorado em relação a 2019 (32,04%), ainda está acima do limite considerado ideal pela Portaria nº 490/2021, de 25%. As causas incluem vazamentos em tubulações, ligações clandestinas e falhas em hidrômetros.
Em setembro, a prefeitura anunciou que os serviços em Porto Alegre passarão a ser regulados pela Agergs, buscando assegurar a sua prestação adequada e eficiente, equilibrando os interesses entre os prestadores de serviço, os usuários e o poder público.
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Estações operam com capacidade limitada após as enchentes
Os dados apresentados são de 2023, anteriores à tragédia climática de 2024, e o Dmae reconhece que a situação pode ter se agravado após os danos sofridos nas estações de tratamento.
Atualmente, o município conta com 10 Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs) e 36 Estações de Bombeamento (EBEs), responsáveis pelo atendimento de mais de 761 mil economias cadastradas. Duas dessas unidades — Navegantes e Sarandi — ainda estão em processo de recuperação, após terem sido alagadas durante as enchentes de 2024. Já a ETE Serraria, a maior da capital, passa por melhorias e opera abaixo da capacidade máxima.
A autarquia projeta que, com a reconstrução das estruturas afetadas e a conclusão das obras em andamento, a capacidade de tratamento chegue a 80% da cidade. Os contratos e editais para os reparos estão em execução, e a expectativa é que as ETEs voltem a operar plenamente no início de 2026.
🔎Tipos de esgoto:
O esgoto pode ser cloacal (doméstico, proveniente de banhos, pias e descargas), industrial (gerado por fábricas e processos produtivos, com resíduos químicos) ou pluvial (águas da chuva que escoam por ruas e calçadas).
🔎Coleta x tratamento:
A coleta leva o esgoto até as estações, enquanto o tratamento remove poluentes antes do retorno da água ao ambiente. A falta de tratamento causa riscos à saúde e poluição de rios e lagos, como ocorre no Guaíba.
Concessão vista como saída
A prefeitura de Porto Alegre aposta na concessão parcial do Dmae como saída para viabilizar os investimentos necessários ao saneamento da cidade. O projeto, aprovado pela Câmara de Vereadores em 23 de outubro, prevê que a captação e o tratamento de água permaneçam sob gestão pública, enquanto a coleta e o tratamento de esgoto serão transferidos à iniciativa privada.
Para o Executivo municipal, a concessão permitirá alcançar maior capacidade financeira e operacional para ampliar a infraestrutura.
“Só acreditamos que será possível atingir os níveis previstos pelo Marco do Saneamento com a concessão parcial do Dmae no final de 2026 e início de 2027. O investimento necessário é de R$ 10 bilhões para alcançar as metas, proteger a cidade contra enchentes e garantir o funcionamento das estruturas de drenagem. A Prefeitura não possui capacidade, nem financeira nem operacional, para realizar todos esses investimentos sozinha”, afirma o diretor-geral Vicente Perrone.
A proposta foi motivo de tensões e forte oposição de servidores, ativistas e parte da população, que argumenta que a medida pode comprometer a qualidade dos serviços e resultar em aumento das tarifas.
Com a aprovação do projeto no Legislativo, a prefeitura deve avançar nos estudos técnicos e na modelagem financeira da desestatização. A previsão é que, após essa etapa, seja lançado o edital de licitação que definirá a empresa responsável pelos serviços.
Paralelamente, a Câmara instaurou uma CPI para apurar denúncias de desmonte do Dmae e supostas irregularidades na autarquia. O relatório final, aprovado em 16 de outubro, atribui à União omissão no sistema de proteção contra cheias, enquanto um documento paralelo da oposição pede a responsabilização penal do prefeito Sebastião Melo (MDB) por omissão diante das falhas no sistema anti-cheias e denúncias de corrupção.
No RS, dados são ainda mais desafiadores
Se Porto Alegre apresenta índices desafiadores na cobertura dos serviços de saneamento básico, no contexto estadual, as estatísticas reveladas pelo relatório do Instituto Trata Brasil são ainda mais preocupantes. Abaixo, veja os números no Rio Grande do Sul:
- Água potável: 88,1% da população atendida
- Coleta de esgoto: apenas 39%
- Tratamento de esgoto: 25,22%, equivalente a 448 piscinas olímpicas de dejetos despejados diariamente no meio ambiente
- Perdas de água: quase 40% da água captada é desperdiçada.
O Instituto Trata Brasil projeta que a universalização dos serviços até 2033 poderia gerar R$ 34,3 bilhões em ganhos sociais e econômicos, o que representa R$ 5 de retorno para cada R$ 1 investido. Esses ganhos são calculados a partir da redução de doenças e custos com saúde pública, aumento da produtividade, valorização imobiliária, preservação ambiental, melhorias em turismo e geração de empregos diretos e indiretos no setor de saneamento.
No campo político e econômico, o Rio Grande do Sul privatizou a Corsan em 2023, operação que prevê R$ 15 bilhões em investimentos até 2033, abrangendo 317 municípios e beneficiando aproximadamente 7,3 milhões de pessoas. Além disso, o estado tem regularizado contratos de saneamento e estruturado blocos regionais, alinhados à regionalização prevista no Marco Legal do Saneamento.
Como atua o Instituto Trata Brasil
O Instituto Trata Brasil é uma organização da sociedade civil criada em 2007 que atua na defesa do saneamento básico e na universalização do acesso à água e ao esgoto no país. Produz relatórios e estudos técnicos com base em dados oficiais, principalmente do Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico (Snisa), do Ministério das Cidades, para monitorar avanços, ampliar a transparência e estimular políticas públicas voltadas à melhoria do setor.
Educação ambiental
Na Vila Pinto, no Bairro Bom Jesus, funciona desde 1996 o Centro de Educação Ambiental (CEA), uma organização não governamental que se tornou referência em conscientização ambiental e desenvolvimento social.
Mais do que uma usina de reciclagem, o CEA se consolidou como um polo comunitário que transforma resíduos em cidadania, oferecendo projetos educacionais, qualificação profissional e atividades culturais para crianças e adultos da comunidade.
No entanto, a própria comunidade que se organiza em torno da educação ambiental convive com a contradição de não ter acesso ao básico. Logo ao lado do Centro e da Escola Municipal José Mariano Beck, córregos de esgoto a céu aberto expõem moradores a riscos. O surto de dengue que atingiu a região em 2024 levou os próprios moradores a se organizarem em mutirões para comprar repelente.